Violência doméstica e familiar Violência doméstica e familiar
Apresentação
O que a senhora fez pra ele te bater?
Por que você não denunciou da primeira vez que ele bateu?
Por que ela não se separa dele?
Ela provocou.
É mulher de malandro, eles se merecem.
Quando descobriu que ela tinha um amante, ele perdeu a cabeça.
Ficou desesperado pelo amor não correspondido e acabou fazendo uma loucura.
Sob diversas formas e intensidades, a violência doméstica e familiar contra as mulheres é recorrente e presente no mundo todo, motivando crimes hediondos e graves violações de direitos humanos. Mesmo assim, frases como essas ainda são amplamente repetidas, responsabilizando a mulher pela violência sofrida e minimizando a gravidade da questão.
De acordo com estudo realizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) – Estudio multipaís de la OMS sobre salud de la mujer y violencia doméstica contra la mujer (OMS, 2002) – as taxas de mulheres que foram agredidas fisicamente pelo parceiro em algum momento de suas vidas variaram entre 10% e 52% em 10 países pesquisados.
No Brasil, estima-se que cinco mulheres são espancadas a cada 2 minutos; o parceiro (marido, namorado ou ex) é o responsável por mais de 80% dos casos reportados, segundo a pesquisa Mulheres Brasileiras nos Espaços Público e Privado (FPA/Sesc, 2010).
Apesar dos dados alarmantes, muitas vezes, essa gravidade não é devidamente reconhecida, graças a mecanismos históricos e culturais que geram e mantêm desigualdades entre homens e mulheres e alimentam um pacto de silêncio e conivência com estes crimes.
Na pesquisa Tolerância social à violência contra as mulheres (Ipea, 2014), 63% dos entrevistados concordam, total ou parcialmente, que “casos de violência dentro de casa devem ser discutidos somente entre os membros da família”. E 89% concordam que “a roupa suja deve ser lavada em casa”, enquanto que 82% consideram que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”.
Um problema de toda a sociedade
Diversas leis e normas nacionais e internacionais frisam que é urgente reconhecer que a violência doméstica e familiar contra mulheres e meninas é inaceitável e, sobretudo, que os governos, organismos internacionais, empresas, instituições de ensino e pesquisa e a imprensa devem assumir um compromisso de não conivência com o problema.
Esta é uma questão grave, que impede a realização do pleno potencial de trajetórias pessoais, vitima famílias inteiras marcadas pela violência e, assim, limita o desenvolvimento global da sociedade.
Dados do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento apontam que uma em cada cinco faltas ao trabalho no mundo é motivada por agressões ocorridas no espaço doméstico. Essas instituições calculam ainda que as mulheres em idade reprodutiva perdem até 16% dos anos de vida saudável como resultado dessa violência.
Confira a seguir uma seleção de dados e pesquisas, informações essenciais e análises de especialistas para apoiar uma compreensão mais ampla sobre a violência contra as mulheres no Brasil.
O que é a violência doméstica?
Uma das imagens mais associadas à violência doméstica e familiar contra as mulheres é a de um homem – namorado, marido ou ex – que agride a parceira, motivado por um sentimento de posse sobre a vida e as escolhas daquela mulher. De fato, este roteiro é velho conhecido de quem atua atendendo mulheres em situação de violência: a agressão física e psicológica cometida por parceiros é a mais recorrente no Brasil e em muitos outros países, conforme apontam pesquisas recentes.
A recorrência, porém, não pode ser confundida com regra geral: a relação íntima de afeto prevista na Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) não se restringe a relações amorosas e pode haver violência doméstica e familiar independentemente de parentesco – o agressor pode ser o padrasto/madrasta, sogro/a, cunhado/a ou agregados – desde que a vítima seja uma mulher, em qualquer idade ou classe social. (saiba mais em ‘responsabilização do agressor’)
O que diz a Lei Maria da Penha
Violência doméstica e familiar contra a mulher é qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, conforme definido no artigo 5oda Lei Maria da Penha, a Lei nº 11.340/2006.
“Quando se fala que a Lei Maria da Penha discrimina os homens, isso não é verdade. A Lei Maria da Penha, na verdade, vai manear um sujeito que sofre uma discriminação específica, uma violência específica e que precisa, portanto, de respostas e mecanismos específicos para sanar essa ausência de direitos ou essas violências.”.
Leila Linhares Barsted, advogada, diretora da ONG CEPIA – Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação e representante do Brasil no MESECVI – Mecanismo de Acompanhamento da Convenção de Belém do Pará da Organização dos Estados Americanos (OEA). (Leia mais)
No artigo 5º da Lei Maria da Penha, quatro pontos merecem atenção:
1) A lei representa um reconhecimento do Estado brasileiro de que, em nosso contexto, os papéis associados ao gênero feminino e o lugar privilegiado do gênero masculino nas relações geram vulnerabilidades para as mulheres, que acabam sendo mais expostas socialmente a certos tipos de violência e violações de direitos.
“Há supostos papéis estabelecidos tanto para homens quanto para mulheres: criam-se estereótipos que afetam a vida das pessoas. Mas, no caso das mulheres, esse impacto acontece em maior grau porque esses estereótipos são discriminatórios e historicamente têm impedido o acesso ao poder econômico e político e a direitos, gerando desigualdade. Há toda uma série de barreiras que são criadas para as mulheres e, nesse contexto, algumas pessoas usam inclusive da violência física e psicológica para manter aquilo que acham que é ‘correto’, para manter o que avaliam ser o ‘lugar da mulher’.”
Ela Wiecko, vice-procuradora-geral da República
2) A Lei Maria da Penha define cinco formas de violência doméstica e familiar, deixando claro que não existe apenas a violência que deixa marcas físicas evidentes:
– violência psicológica: xingar, humilhar, ameaçar, intimidar e amedrontar; criticar continuamente, desvalorizar os atos e desconsiderar a opinião ou decisão da mulher; debochar publicamente, diminuir a autoestima; tentar fazer a mulher ficar confusa ou achar que está louca; controlar tudo o que ela faz, quando sai, com quem e aonde vai; usar os filhos para fazer chantagem – são alguns exemplos de violência psicológica, de acordo com a cartilha Viver sem violência é direito de toda mulher;
– violência física: bater e espancar; empurrar, atirar objetos, sacudir, morder ou puxar os cabelos; mutilar e torturar; usar arma branca, como faca ou ferramentas de trabalho, ou de fogo;
– violência sexual: forçar relações sexuais quando a mulher não quer ou quando estiver dormindo ou sem condições de consentir; fazer a mulher olhar imagens pornográficas quando ela não quer; obrigar a mulher a fazer sexo com outra(s) pessoa(s); impedir a mulher de prevenir a gravidez, forçá-la a engravidar ou ainda forçar o aborto quando ela não quiser;
– violência patrimonial: controlar, reter ou tirar dinheiro dela; causar danos de propósito a objetos de que ela gosta; destruir, reter objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais e outros bens e direitos;
– violência moral: fazer comentários ofensivos na frente de estranhos e/ou conhecidos; humilhar a mulher publicamente; expor a vida íntima do casal para outras pessoas, inclusive nas redes sociais; acusar publicamente a mulher de cometer crimes; inventar histórias e/ou falar mal da mulher para os outros com o intuito de diminuí-la perante amigos e parentes.
3) Na maior parte dos casos, as diferentes formas de violência acontecem de modo combinado.
No estudo multipaíses da OMS realizado no Brasil (Estudio multipaís de la OMS sobre salud de la mujer y violencia doméstica contra la mujer (OMS, 2002), cerca de 30% das mulheres que disseram ter sido agredidas pelo parceiro afirmam que foram vítimas tanto de violência física como de violência sexual; mais de 60% admitem ter sofrido apenas agressões físicas; e menos de 10% contam ter sofrido apenas violência sexual.
Segundo a pesquisa, a maioria das agressões conjugais reflete um padrão de abuso contínuo e pode ter consequências como dores pelo corpo, dificuldades para realizar tarefas cotidianas, depressão, abortos e tentativas de suicídio.
“Existe esse ‘vício’ de só enxergar gravidade e importância na violência física, e os outros tipos de violência não importam tanto quando há essa visão viciada. E foi com isso que a Lei Maria da Penha quis muito claramente romper quando explicou todas as formas de violência e todo o conceito de violência doméstica em seus primeiros artigos. É preciso entender que a violência física é só mais um traço de um contexto muito mais global de violência, que inclui a violência moral, humilhações, a violência psicológica, a restrição da autodeterminação da mulher.”
Juliana Belloque, Defensora pública do Estado de São Paulo
4) Além de ação, a omissão diante da violência também é responsabilizada pela Lei: fazer de conta que não viu, omitir-se ou ser conivente com uma agressão aos direitos da mulher também é uma maneira de praticar violência.
Dados nacionais
A violência doméstica é um fenômeno de extrema gravidade, que impede o pleno desenvolvimento social e coloca em risco mais da metade da população do País – as 103,8 milhões de brasileiras contabilizadas na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2013, do IBGE.
De acordo com o Mapa da Violência 2012: Homicídios de Mulheres no Brasil (Cebela/Flacso, 2012), duas em cada três pessoas atendidas no SUS em razão de violência doméstica ou sexual são mulheres; e em 51,6% dos atendimentos foi registrada reincidência no exercício da violência contra a mulher. O SUS atendeu mais de 70 mil mulheres vítimas de violência em 2011 – 71,8% dos casos ocorreram no ambiente doméstico.
Não à toa, a pesquisa Violência e Assassinatos de Mulheres (Data Popular/Instituto Patrícia Galvão, 2013) revelou significativa preocupação com a violência doméstica: para 70% da população, a mulher sofre mais violência dentro de casa do que em espaços públicos no Brasil.
Os dados dessa pesquisa revelam ainda que o problema está presente no cotidiano da maior parte dos brasileiros: entre os entrevistados de ambos os sexos e de todas as classes sociais, 54% conhecem uma mulher que já foi agredida por um parceiro e 56% conhecem um homem que já agrediu uma parceira.
O Balanço 2014 do Ligue 180 – Central de Atendimento à Mulher (SPM-PR) aponta que em mais de 80% dos casos de violência reportados, a agressão foi cometida por homens com quem as vítimas têm ou tiveram algum vínculo afetivo: atuais ou ex-companheiros, cônjuges, namorados.
Frequentemente essa violência torna-se parte do cotidiano dessas mulheres: em 43% dos casos de violência registrados em 2014 pelo serviço Ligue 180 as agressões ocorriam diariamente; em 35%, a frequência era semanal.
Em si impactantes, esses dados ainda podem representar apenas uma parte da realidade, uma vez que parcela considerável dos crimes em relações íntimas não chega a ser denunciado.
O estudo realizado pela OMS (Estudio multipaís sobre salud de la mujer y violencia doméstica contra la mujer (OMS, 2002) constatou que cerca de 20% das mulheres agredidas fisicamente pelo marido no Brasil permaneceram em silêncio e não relataram a experiência nem mesmo para outras pessoas da família ou para amigos (saiba por que é difícil quebrar o silêncio).
Por outro lado, a pesquisa Violência e Assassinatos de Mulheres (Data Popular/Instituto Patrícia Galvão, 2013) mostra que apenas 2% da população nunca ouviu falar da Lei Maria da Penha e que, para 86% dos entrevistados, as mulheres passaram a denunciar mais os casos de violência doméstica após a Lei. E 86% concordam também que a agressão contra as mulheres deve ser denunciada à Polícia, demonstrando que o enfrentamento a esta forma de violência tem o respaldo da população.
>>Veja mais pesquisas e dados sobre a violência doméstica no Brasil
Quais as causas
Papéis rígidos e discriminatórios criam desigualdades nas relações
“Há um enorme desequilíbrio de poder entre homens e mulheres – e a violência talvez seja a evidência mais cruel desse desequilíbrio.”
Nilcéa Freire, ex-ministra de Políticas para as Mulheres e atual representante da Fundação Ford no Brasil
Esse desequilíbrio está lastreado em concepções desiguais de gênero que determinam os comportamentos femininos e masculinos tidos como socialmente adequados.
Essas concepções são resultado de um complexo aprendizado social, e não se baseiam em determinações estritamente biológicas, embora muitas vezes sejam apresentadas como se fossem ‘naturais’ ou até mesmo valorizadas como características essenciais de pertencimento (veja mais em cultura de violência).
“É muito comum o uso de termos como genes, hormônios ou hereditariedade para explicar ou desculpar o comportamento humano. Enquanto pensarmos que comportamentos masculinos como agressividade ou apetite sexual são biológicos, perderemos o foco das questões sociais e culturais, que são as que precisam ser resolvidas. Não podemos aceitar o mau comportamento masculino.”
Matthew Gutmann, antropólogo especialista em masculinidade da Universidade Brown (EUA)
É comum os homens serem valorizados pela força e agressividade, por exemplo, e muitos maridos, namorados, pais, irmãos, chefes e outros homens acham que têm o direito de impor suas opiniões e vontades às mulheres e, se contrariados, recorrem à agressão verbal e física.
Com base em construções culturais desse tipo, que vigoram há séculos, muitos ainda acham que os homens são ‘naturalmente superiores’ às mulheres, ou que eles podem mandar na vida e nos desejos delas, e que a única maneira de resolver um conflito é apelar para a violência.
Mecanismos como esses estão nas raízes dos níveis de tolerância social a diferentes formas de violência e atuam em muitos casos em que agressões acontecem para ‘justificar’ ou minimizar a responsabilização de quem cometeu o ato violento, atribuindo as ações praticadas por uma pessoa à biologia ou, pior ainda, a quem foi vítima da agressão.
“É preciso identificar e desnaturalizar noções e práticas que reiteram lugares bastante rígidos para homens e mulheres na sociedade, para desmistificar estereótipos e compreender os mecanismos da persistente desigualdade. Esses papéis rígidos fazem parte de uma cultura que está introjetada em todos nós e é permissiva e, ao mesmo tempo, reprodutora de violências.”
Ana Flávia D’Oliveira, médica, pesquisadora e professora do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP)
Exemplos de como esses estereótipos estão nas raízes da violência doméstica:
- ‘Ela não cumpriu o seu papel como mulher’
“Grande parte dos homens autores de violências contra suas parceiras dizem: ‘eu bati nela porque ela me tirou do sério, me irritou, a culpa é dela’. Quando a gente começa a analisar isso junto com eles e questionar – ‘por que você acha que tem direito de controlar a maneira como ela se veste? Por que você acha que ela deve cozinhar para você?’ – é quase impossível separar o que eles entendem como ‘ser homem’ e os direitos que isso lhes dá, da maneira que eles se comportam e de suas atitudes’.”
Marai Larasi, diretora executiva da Imkaan, organização não governamental feminista negra, e da End Violence Against Women Coalition (Coalizão de Combate à Violência contra Mulheres) sediadas no Reino Unido.
Achar que é uma prerrogativa do parceiro ‘disciplinar’ ou ‘controlar’ a mulher ou que ela é a única responsável pelas tarefas domésticas e de cuidado com as crianças e idosos são exemplos de como papéis rígidos de gênero podem ser utilizados para ‘justificar’ a violação do direito das mulheres a uma vida livre de violência.
Esta lógica de pensamento masculino que cristaliza ‘deveres femininos’, muitas vezes, aparece também nas raízes do estupro conjugal – a violência sexual praticada pelo próprio parceiro da mulher, quando esse homem assume que o relacionamento é uma prerrogativa para a relação sexual independentemente da vontade e do consentimento da mulher.
- A decisão da mulher de romper um relacionamento não é aceita
“No Brasil, há um desenvolvimento da estrutura psíquica masculina — do ponto de vista cultural, não de indivíduos em particular — que está pouco preparada para receber a rejeição feminina. É ele que pode rejeitar. Este modelo aparece de maneira muito forte na violência contra as mulheres, porque quando uma mulher desiste daquele homem e decide acabar com a relação, a honra dele está manchada. São os casos mais clássicos de pancadaria na família ou eventualmente assassinato da mulher.”
Maria Luiza Heilborn, professora associada do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ) e pesquisadora do CLAM (Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos).
Não por acaso, o momento de rompimento da relação violenta é visto por especialistas como um momento de grande risco para a integridade física e a vida da mulher (ver mais sobre feminicídio).
- ‘Foi ela que começou’: ninguém deve ser responsabilizado pela violência que sofreu
“A maioria dos homens se sente extremamente injustiçada e é preciso quebrar essa barreira. Trabalhamos muito a responsabilização com os homens autores de agressão, fazemos um trabalho de desconstrução da desigualdade entre homens e mulheres e de responsabilização pelo ato de violência.”
Rebeca Rohlfs, psicóloga que foi coordenadora geral do Instituto Albam, que atua com homens autores de agressão.
Um problema que acontece com frequência é que os agressores, autorizados pela cultura de desigualdade entre homens e mulheres, não enxergam que cometeram uma violência e jogam a responsabilidade dos seus atos na vítima.
O uso do álcool como justificativa
“É preciso criar uma forma para que esses homens possam se responsabilizar, entendendo que a violência não é fruto do uso de álcool ou de drogas, mas que é a própria construção da masculinidade que, de certa forma, desencadeia esse exercício da violência sobre as mulheres.”
Sergio Barbosa, filósofo coordenador do trabalho realizado com homens autores de agressão na cidade de São Paulo pela ONG Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde.
Outro senso comum amplamente disseminado é apontar o uso de álcool, drogas ou o ciúme como causas da violência, mas atenção: esses são apenas fatores que podem desencadear uma crise de violência, não são as causas e nem devem ser aceitos como justificativa para a agressão.
A Lei Maria da Penha prevê em seu artigo 35 que sejam criados, pela União, Estados e Municípios, centros e serviços para realizar atividades reflexivas, educativas e pedagógicas voltadas para os agressores. Esta é uma parte importante das ações de enfrentamento à violência contra as mulheres, mas que ainda conta com poucos serviços no País.
Os resultados esperados seriam a responsabilização do homem pela violência cometida, em paralelo com a desconstrução de estereótipos de gênero, ou seja, dos papéis femininos e masculinos, e a conscientização de que a violência contra as mulheres, além de grave crime, é uma violação epidêmica de direitos humanos. Dessa forma, o trabalho se somaria a ações educativas e preventivas que buscam coibir o problema em duas frentes – evitando que o agressor volte a cometer violências, em sentido mais imediato, e mudando mentalidades, para resultados no médio prazo. Saiba mais.
Fatores que podem aumentar o risco de um episódio de violência
A manifestação da violência não tem uma causa simples e única, mas decorre de um sistema complexo e que exige esforços em múltiplas frentes para ser coibido.
Na pesquisa multipaíses da OMS sobre violência por parceiro íntimo , adota-se um enfoque conhecido por ‘modelo ecológico de geração da violência’, em que são elencados os fatores de diferentes esferas que concorrem para um maior risco de ocorrência de um episódio de violência.
Nesse modelo são considerados os fatores individuais, tanto das vítimas quanto dos agressores, e também os relacionados à qualidade da relação entre eles e ao meio social em que vivem – desde o círculo mais íntimo dessas pessoas, da comunidade local, até um contexto mais amplo, como o do país ou da sociedade em que vivem.
Confira abaixo fatores que se relacionam, gerando um maior risco de que a violência aconteça:
“Os círculos mais alargados são relativos à comunidade, à sociedade. Os fatores que estão lá dizem respeito à legislação, normas culturais, desigualdade entre homens e mulheres em termos de participação política, acesso à informação, nível salarial. Tais fatores gerais se relacionam com fatores individuais, que podem ser desencadeadores de violência, como ter sofrido violência na infância ou testemunhado abusos em família.”
Ana Flávia D’Oliveira, médica, pesquisadora e professora do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP.
Há um perfil de vítima e um de agressor?
Um dos pontos mais importantes para compreender a violência doméstica e familiar é reconhecer que não existem perfis de vítimas e agressores e nem padrões absolutos de comportamento.
“Não podemos só trabalhar com padrões absolutos, temos que ir ao cerne das relações familiares, compreendê-las. Às vezes, a gente vê alguns padrões: por exemplo, o juiz pode olhar um caso e dizer “mulher contra mulher raramente é violência doméstica, já homem contra a mulher sempre é” – e na prática sabemos que pode haver muitas configurações. Esses padrões, quando colocados como absolutos, levam a equívocos, então é preciso analisar em que bases de discriminação de gênero aquela família ainda trabalha ou não.”
Juliana Belloque, defensora pública do Estado de São Paulo
Cada relação violenta tem um contexto
Mapear o contexto de cada relação onde ocorre a violência contra as mulheres, portanto, é essencial para identificar as discriminações de gênero que estão nas raízes de agressões reiteradas.
“É preciso buscar descrever quais são os papéis desempenhados naquela relação familiar. Quais são as funções da mulher naquela família? Qual é o papel que ela desempenha? O quanto o irmão ou o marido, por exemplo, interferem nas suas escolhas de vida, no seu dia a dia, na sua autodeterminação? Ela tem a função de cuidar da casa e das crianças e tem que dar satisfação quando sai? Qual é a autonomia que ela tem sobre sua vida naquela família? Isso tudo vai ser fundamental para saber se existe uma relação de dominação, restrições e humilhações. É isso que vai dar todo o ‘colorido’ para a agressão física e mostrar o contexto da violência de gênero.”
Juliana Belloque, defensora pública do Estado de São Paulo
A violência doméstica não escolhe idade, classe social, raça/cor ou escolaridade
Rica ou pobre, branca ou negra, jovem ou idosa, com deficiência, lésbica, indígena, vivendo no campo ou na cidade, não importa a religião ou escolaridade. Toda mulher pode sofrer violência, uma vez que, no Brasil (e em outros países do mundo), o processo social, histórico e cultural naturalizou definições das identidades do masculino e do feminino que, carregadas de desigualdades, contribuem para que as mulheres estejam mais expostas a certos tipos de violência, como a doméstica e a sexual.
“A violação dos direitos humanos das mulheres atravessa gerações e fronteiras geográficas e ignora diferenças de níveis de desenvolvimento socioeconômico. A violência está mais presente do que se imagina em diversas relações e acontece cotidianamente.”
Jacira Vieira de Melo, diretora executiva do Instituto Patrícia Galvão.
Entretanto, a conjugação de preconceitos pode levar a um cenário de maior risco, já que as múltiplas formas de violência contras as mulheres estão baseadas em sistemas de desigualdades que se retroalimentam, sobretudo em relação às questões de gênero, raça, etnia, classe e orientação sexual.
A intersecção entre racismo e sexismo, por exemplo, muito presente na história brasileira, faz com que as mulheres negras sejam maioria entre as vítimas de violência doméstica (59,4%, segundo consta no Raseam 2014, o Relatório Anual Socioeconômico da Mulher, editado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência).
Quanto à idade, de acordo com o Mapa da Violência 2012: Homicídios de mulheres no Brasil (Cebela/Flacso, 2012), com base nos atendimentos de casos de violência contra mulheres realizados pelo SUS, é possível afirmar que para as mulheres entre 20 e 59 anos, o agressor é majoritariamente o cônjuge, namorado ou ex.
No caso da violência por parceiros, as pesquisas indicam que a maioria das vítimas está em idade reprodutiva, embora seja comum que a vulnerabilidade geracional também se some à de gênero, vitimando meninas e idosas em outras relações familiares e de convivência.
Quem é o agressor?
A Lei Maria da Penha define que a violência doméstica e familiar pode ocorrer nas seguintes relações e contextos:
– no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
– no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
–em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação
E a Lei Maria da Penha destaca no parágrafo único de seu artigo 5º: “as relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual”.
Quem pode praticar a violência, então:
1) Segundo a Lei Maria da Penha, a violência pode partir de maridos, companheiros, namorados – ex ou atuais e que morem ou não na mesma casa que a mulher.
2) A Lei Maria da Penha aplica-se tanto a relações heterossexuais como a casais de mulheres (saiba mais).
3) Mas a Lei Maria da Penha não se restringe às relações amorosas, ou seja, também vale para a violência cometida por outros membros da família, como pai, mãe, irmão, irmã, padrasto, madrasta, filho, filha, sogro, sogra – desde que a vítima seja uma mulher, em qualquer faixa etária.
4) A Lei Maria da Penha também se aplica quando a violência doméstica ocorre entre pessoas que moram juntas ou frequentam a casa, mesmo sem ser parentes, como um cunhado ou cunhada.
Em resumo, a violência doméstica e familiar pode ser praticada por qualquer pessoa que tenha ou teve relação íntima e de afeto com a vítima, independentemente do sexo dessa pessoa. Então, embora apareçam como maioria nas pesquisas, os agressores não são apenas homens.
Por que é tão difícil sair de uma relação violenta
Denuncie!
Com a Lei Maria da Penha cada vez mais conhecida pela população brasileira (99% declaram conhecer a Lei, ao menos de ouvir falar; Pesquisa Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (DataSenado, 2013), essa mensagem tem sido cada vez mais dirigida não só às mulheres que sofrem agressões físicas e psicológicas, mas a toda a sociedade. A proposta é mostrar definitivamente que esta violência não é um assunto da esfera privada, mas sim uma violação de direitos humanos que demanda respostas do Poder Público e um pacto de não tolerância de toda a população.
Denunciar, porém, não é fácil quando as agressões partem de uma pessoa com quem a vítima mantém relações íntimas de afeto, cujo rompimento coloca questões emocionais e objetivas, que envolvem a desestruturação do cotidiano e até mesmo o risco de morte para a mulher.
Neste cenário complexo, enfrentado por muito tempo de forma solitária, é fundamental que a mulher que rompe o silêncio seja bem acolhida pela sua rede pessoal e pelos serviços de atendimento.
Na prática, entretanto, a falta de conhecimento sobre as especificidades deste tipo de violência faz com que a mulher, muitas vezes, acabe sendo julgada por não colocar um ponto final naquela situação.
Dinâmica da violência doméstica
A própria dinâmica da violência doméstica, que costuma se repetir e se tornar cada vez mais grave e frequente, pode minar a capacidade de reação da mulher. A isso se associam ainda outros fatores, como a falta de informação e conhecimento sobre seus direitos e sobre a rede de atendimento, sentimentos de medo, culpa e vergonha, a dependência econômica do agressor para a criação dos filhos e a falta de acesso e/ou confiança nos serviços de atendimento a mulheres em situação de violência.
“É um dever do Estado responder a isso, primeiro, fortalecendo os serviços especializados, garantindo acesso a informação e proteção às mulheres. Isso é fundamental para que elas comecem efetivamente a perder o medo. Mas, para a mulher perder o medo – e a vergonha também – é preciso o apoio de uma outra rede: a rede pessoal, composta pelos amigos, vizinhos e parentes. A sociedade, tanto homens quanto mulheres, precisa se posicionar e não aceitar a violência contra a mulher.”
Aparecida Gonçalves, secretária nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência
Veja cinco fatores que, com frequência, corroboram para a manutenção da situação de violência por um período longo:
1) A discriminação contra as mulheres concorre não só para que a violência aconteça, mas para sua permanência
“O primeiro obstáculo com o qual a mulher vítima de violência se depara diz respeito a ela mesma, que deve enfrentar a cultura patriarcal em que vive e que preconiza a superioridade do homem e a passividade e obediência da mulher e que, em muitos casos, ainda está introjetada na vítima, limitando sua reação.”
Jacqueline Pitanguy, coordenadora executiva da ONG Cepia – Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação, é membro do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM)
2) O papel tradicional de mãe imposto às mulheres faz com que elas coloquem os filhos e o relacionamento do pai com os filhos em primeiro lugar
“As distinções de gênero refletem uma história, uma relação secular de dominação do homem sobre a mulher. Por que a mulher fica em uma relação violenta? Nossa cultura de gênero é para preservar o casamento, criar os filhos. A mulher tem vergonha, medo, insegurança interior de abandonar tais papéis. O mais cruel nesses episódios é que a culpa acaba recaindo sobre a figura feminina.
A mulher não é somente ela nessa relação. Ela é uma unidade familiar, pois nunca avalia a situação só a partir dela, inclui sempre os filhos. Ela pensa onde irá morar com os filhos, onde os filhos irão estudar em caso de separação. A violência de gênero é um fenômeno muito complexo. Não depende apenas de medidas punitivas. Demanda medidas mais amplas de mudança de comportamento e mentalidades, embora a Lei Maria da Penha seja fundamental.”
Jacira Vieira de Melo, diretora executiva do Instituto Patrícia Galvão
Para além das questões objetivas, muitas vezes, a mulher acredita que, apesar das agressões, o parceiro é ‘um bom pai´, embora pesquisas demonstrem que a convivência com o ambiente violento também tem impactos negativos na saúde da criança (saiba mais).
Dos casos de violência registrados em 2014 pela Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 (Balanço 2014 do Ligue 180 – Central de Atendimento à Mulher (SPM-PR, 2015), 80% das vítimas tinham filhos, sendo que 64,35% deles presenciavam a violência,e 18,74% eram vítimas diretas juntamente com as mães.
3) A mulher é ameaçada de morte se acabar com a relação
Vergonha e medo de ser assassinada são percebidos pela população como as principais razões para a mulher não se separar do agressor, de acordo com a pesquisa sobre Violência e Assassinatos de Mulheres (Data Popular/Instituto Patrícia Galvão, 2013).
Segundo a pesquisa, 85% dos entrevistados concordam que as mulheres que denunciam seus agressores correm mais risco de serem assassinadas. E 92% concordam que, quando as agressões ocorrem com frequência, podem terminar em assassinato.
“Olha o dilema que aparece na percepção da população: se denunciar, morre, mas se continuar também morre. Para nós, que temos a experiência no atendimento e acolhimento de casos de violência doméstica, o risco maior – sem dúvida – é viver com o agressor, por conta do ciclo da violência. É preciso acreditar na possibilidade de interrupção da violência e de divulgar o que existe de apoio, para que a mulher encontre solidariedade na sua rede pessoal e também para que busque os equipamentos e serviços do Estado.”
Márcia Teixeira, promotora de Justiça do Ministério Público da Bahia
4) Ciclo de violência: ela acredita que ele vai melhorar
O chamado ‘ciclo de violência’ é uma forma muito comum da violência se manifestar, geralmente entre casais. Compreender o ciclo de violência ajuda a entender a dinâmica das relações violentas e a dificuldade de a mulher sair dessa situação.
O ciclo começa coma fase da tensão, em que as raivas, insultos e ameaças vão se acumulando. Em seguida, aparece a fase da agressão, com o descontrole e uma violenta explosão de toda a tensão acumulada. Depois, chega a fase de fazer as pazes (ou da ‘lua de mel’), em que o parceiro pede perdão e promete mudar de comportamento, ou então age como se nada tivesse ocorrido e, ao mesmo tempo, fica mais calmo e carinhoso e a mulher acredita que a agressão não vai mais acontecer.
Esse ciclo costuma se repetir, com episódios de violência cada vez mais graves e intervalo menor entre as fases. Por isso, permanecer em uma situação violenta sem procurar ajuda, seja de familiares, amigos ou da rede de atenção, pode representar riscos com consequências graves. A mulher que está nessa situação em geral precisa de apoio para quebrar o silêncio e romper esse ciclo.
Especialistas observam que, nesse contexto, não se deve julgar a mulher que permanece em uma relação violenta, mas procurar entendê-la e ajudá-la a sair dessa situação, tendo em mente que o rompimento também coloca sua vida em risco. Sem segurança e sem apoio, isso é muito difícil.
5) Quando a mulher procura ajuda, é desencorajada
De acordo com uma pesquisa realizada pelo Ipea (Pesquisa Tolerância social à violência contra as mulheres, Ipea, março-abril/2014), embora 91% concordem que “homem que bate na esposa tem que ir para a cadeia”, 63% concordam que “casos de violência dentro de casa devem ser discutidos somente entre os membros da família”. Além disso, 89% dos entrevistados pensam que “a roupa suja deve ser lavada em casa” e 82%, que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”.
Esse contexto de tolerância social à violência pode fazer com que a mulher acredite que não vai ser levada a sério se buscar proteção, ou então que ela se sinta isolada e sozinha.
A vítima pode ainda enfrentar a chamada ‘rota crítica’ – o caminho fragmentado e tortuoso que a mulher percorre buscando o atendimento do Estado, arcando com as dificuldades estruturais existentes, como de transporte de um atendimento para outro, repetindo o relato da violência sofrida reiteradas vezes e, ainda, enfrentando com frequência a violência institucional por parte de profissionais que, pouco sensibilizados, reproduzem discriminações contra as mulheres nos serviços de atendimento.
É justamente para evitar situações como a revitimização que a Lei Maria da Penha determina a criação de serviços especializados para o atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar. A proposta é que esses serviços contem com profissionais que, sensibilizados em relação à dinâmica do ciclo da violência e às discriminações de gênero existentes, saibam lidar com a complexidade dos casos.
“Sempre falo aos defensores que eles têm que ter muita paciência ao atender a mulher, saber ouvi-la e compreender que ela deve ser atendida quantas vezes forem necessárias. Se ela demorar 10 anos para romper o ciclo de violência e vier me procurar uma vez por ano, tenho que atendê-la o melhor que puder, porque é o tempo dela e não o meu. Não sabemos os caminhos que ela percorreu até chegar aqui e tomar uma atitude, e ela tem que voltar quantas vezes quiser até estar preparada para romper o ciclo. Não podemos julgar essa mulher.”
Graziele Carra Dias Ocáriz, defensora pública e coordenadora do Nudem(Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher em Situação de Violência de Gênero) do MS.
Nessa rota fragmentada, muitas vezes, a mulher desiste da denúncia, por fatores como medo, insegurança, descrença ou reconciliação com o agressor. Para evitar que isso aconteça, é preciso realizar um trabalho de prevenção e acolhimento que garanta que as próprias mulheres sejam capazes de sair do ciclo de violência.
Casa da Mulher Brasileira: política pública para integração e humanização do atendimento
Buscando responder aos problemas existentes na chamada ‘rota crítica’, a Secretaria de Políticas para as Mulheres lançou, em 2013, o Programa Mulher, Viver sem Violência. Uma das principais ações do programa são as chamadas Casas da Mulher Brasileira: um equipamento que oferece integração dos serviços em um mesmo espaço físico e capacitação para os profissionais, buscando ser uma referência para o acolhimento de mulheres e a responsabilização dos agressores.
Com duas unidades em funcionamento, em Campo Grande (MS) e Brasília (DF), a expectativa da pasta é que todas as capitais contem com uma Casa da Mulher Brasileira até 2018, colocando em prática o atendimento integral e funcionamento 24 horas, inclusive nos finais de semana (saiba mais).
Como superar?
Viver sem violência é um direito. A mulher que se encontra nessa situação precisa saber que não está sozinha e que, como se trata de um problema social, existem leis e políticas públicas para protegê-la (saiba mais).
Procurar informações e buscar apoio são os primeiros passos para sair da situação de violência.
Romper com a violência é uma decisão difícil, mas é importante pedir ajuda – e quanto antes melhor, uma vez que a tendência dos episódios de agressão é de agravamento.
De acordo com a Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180, cada tipo de violência requer atenção e atendimento diferenciados. Caso o profissional de comunicação queira divulgar informações que possam ajudar uma mulher em situação de violência, a página da Central na internet reúne orientações: http://clique180.org.br/cms/sofri-violencia.
O próprio serviço Ligue 180 também pode apresentar uma saída para quem está no ciclo de violência. Segundo a Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR), o serviço é estratégico pelo seu alcance: com abrangência nacional, pode ser acessado gratuitamente, 24 horas por dia, de qualquer terminal telefônico – móvel ou fixo, particular ou público – todos os dias da semana, inclusive domingos e feriados.
Lei Maria da Penha
O caminho para prevenir, punir e coibir a violência
“Antes da Lei Maria da Penha, a violência doméstica era negociada por cestas básicas nos Juizados Especiais como um crime de ‘menor potencial ofensivo’.Antes da Lei, a violência doméstica não era ‘nada’ para o operador jurídico, que agia como bem entendia, sacrificando a mulher para salvar a ‘harmonia familiar’. A Lei Maria da Penha tirou a violência doméstica da invisibilidade, ganhou o gosto popular e é conhecida e reconhecida pela população, que se sente mais segura após sua entrada em vigor para fazer suas denúncias.”
Lindinalva Rodrigues Dalla Costa, promotora de Justiça do Ministério Público do Estado de Mato Grosso e integrante da Copevid (Comissão Permanente de Promotores da Violência Doméstica) do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça (CNPG).
O Brasil conta com a terceira melhor lei do mundo no combate à violência doméstica, atrás apenas de Espanha e Chile, segundo a Organização das Nações Unidas: a Lei Maria da Penha (Lei n° 11.340/2006).
A Lei Maria da Penha determinou de forma definitiva que a violência doméstica contra a mulher é crime e requer respostas eficazes do Estado e um pacto de não tolerância por toda a sociedade, apontando a verdadeira dimensão desta grave violação dos direitos humanos das mulheres.
Quando ainda não existia a Lei Maria da Penha, a abordagem jurídica dos casos de violência doméstica era baseada na Lei nº 9.099/1995, que minimizava o problema, segundo especialistas, propondo punições alternativas para os agressores, como a doação de cestas básicas.
“Em primeiro lugar, as mulheres só podem ter acesso à Justiça se tiverem conhecimento dos seus direitos. E isso é fundamental para o segundo ponto essencial nesse enfrentamento: a denúncia, pois sem denúncia não há crime. A mulher tem que denunciar e, ao mesmo tempo, ter a garantia de que este ato vai ter um impacto na situação de agressão sofrida por ela. E aí chegamos a um terceiro ponto muito importante, que é a quebra da impunidade por meio do Estado presente.”
Eleonora Menicucci, ministra chefe da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência.
As desigualdades de gênero podem impedir o acesso a direitos
A plena concretização dos direitos garantidos às mulheres pelas normas nacionais e internacionais também esbarra, em muitos casos, na incompreensão das desigualdades de gênero e de seus efeitos pelas sociedades de um modo geral, e inclusive por uma parcela significativa dos profissionais que atuam na rede de atendimento cotidianamente.
“Vemos muitas decisões em que se interpreta gênero como sinônimo de sexo – o que é um equívoco, mas que pode não interferir no acesso das mulheres aos direitos previstos na Lei Maria da Penha. E há situações em que a falta de compreensão leva a negar direitos, quando, por exemplo, se interpreta o gênero como hipossuficiência, levando a decisões como a do caso da Luana Piovani, em que se afirma não caber a aplicação da Lei por não se tratar de uma mulher ‘vulnerável’. Outro equívoco muito comum é considerar que a mulher faz jus à Lei porque ela tem uma ‘inferioridade física’, o que é uma visão estereotipada. Compreensões como a da fragilidade física ou da hipossuficiência como sendo caracterizadoras do gênero revelam uma discriminação. Aí, quando a mulher não for fraca ou ganhar bem, vão dizer que não se aplica a Lei Maria da Penha, prejudicando o seu acesso à Justiça”
Ela Wiecko, vice-procuradora geral da República
Medida protetiva: uma ferramenta jurídica que pode salvar vidas
A Lei Maria da Penha aponta formas e caminhos para evitar, enfrentar e punir a agressão. Indica também a responsabilidade que cada órgão público tem para ajudar a mulher que está sofrendo a violência (saiba mais sobre os direitos e serviços para efetivá-la).
A Lei nº 11.340 introduziu ainda uma ferramenta importante que possibilita a intervenção do Estado em uma situação de violência de modo quase imediato, na busca de proteger a vida da mulher: as chamadas medidas protetivas de urgência.
“A Lei Maria da Penha trouxe muitas inovações, mas a medida protetiva é o que há de mais precioso em termos de garantir a segurança da mulher de forma imediata. É uma medida judicial especializada, porque temos uma vítima e um réu que se conhecem: o réu sabe onde a vítima mora, não é o mesmo caso de uma pessoa que é assaltada na rua. Então, por conta dessa relação muito próxima entre o réu e a vítima, essa medida precisa de um acompanhamento especial.”
Luciane Bortoleto, titular do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Curitiba/PR
Como o próprio nome diz, essas medidas têm o objetivo de proporcionar proteção à mulher que está sofrendo violência. Algumas medidas são voltadas para a pessoa que pratica a violência, como o afastamento do lar, proibição de chegar perto da vítima e suspensão de porte de armas. Outras medidas são voltadas para a mulher,como o encaminhamento para programa de proteção ou atendimento pelos diferentes serviços do Poder Público.
“A medida protetiva é o principal recurso da Lei em um estágio em que não há como adotar outras opções de intervenção para a prevenção de novas agressões e até do homicídio. É uma ferramenta usada, muitas vezes, em situações que parecem ser irreversíveis, tendo então um sentido de freio, de concretizar a intervenção do Estado e interromper o ciclo de violência para que a gente possa tomar um fôlego e dar continuidade à conclusão do inquérito policial e ao acolhimento da mulher em situação de violência.”
Márcia Teixeira, promotora de Justiça do Ministério Público da Bahia
O avanço legislativo, entretanto, ainda não representa a garantia de uma vida livre de agressões para uma parcela significativa das 103,8 milhões de brasileiras. Para diminuir a distância entre o texto legal e a efetiva fruição do direito, é preciso investir nos serviços especializados para garantir sua expansão no território nacional com qualidade e democratizar o acesso à Justiça no País. Segundo a Secretaria de Políticas para as Mulheres, em 2014 havia apenas 1.007 serviços especializados de atendimento à violência contra as mulheres – como os Centros Especializados de Atendimento às Mulheres, os Juizados Especializados em Violência Doméstica e Familiar, as Defensorias Públicas e Ministérios Públicos Especializados e as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher – em sua maioria concentrados nas capitais, muito aquém da demanda e das necessidades das brasileiras.
O que a imprensa pode fazer
A mídia tem um importante papel no enfrentamento da violência contra as mulheres. Pode, por exemplo:
Divulgar os direitos e serviços
“É necessário que as mulheres tenham noção de seus direitos. É preciso, em primeiro lugar, informá-las que têm direitos; em segundo, quais são e que elas podem exigir esses direitos; e, em terceiro, aonde ir para exigi-los. É preciso ainda promover a educação em direitos não só para as mulheres, mas para toda a população. Precisamos mostrar que nós, mulheres, não queremos acesso à Justiça porque somos vítimas, mas porque somos sujeitos de direitos.”.
Silvia Pimentel, advogada e integrante do Comitê CEDAW (Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres) das Nações Unidas.“Diversas pesquisas já mostraram que a maioria absoluta da população – entre 92% a 99% – declara conhecer a Lei Maria da Penha, embora não conheça em detalhes o seu conteúdo. É preciso divulgar mais os instrumentos da Lei que garantem a segurança e os direitos das mulheres, como as medidas protetivas de urgência, a estabilidade no emprego e a assistência jurídica e psicossocial.”
Marisa Sanematsu, diretora de conteúdos do Instituto Patrícia Galvão e editora do Portal Compromisso e Atitude pela Lei Maria da Penha.
Cobrar qualidade e capilaridade dos serviços de atendimento
Para a mulher, quebrar o silêncio sobre sua situação de violência é uma decisão muito grave e difícil. Por isso, os serviços de atendimento precisam estar bem equipados e com capacidade de acolhimento, prevenção e proteção às mulheres.
“Ter uma porta aberta que vai receber essa mulher é fundamental para impedir que ela continue na violência. Então, é preciso que haja uma escuta, é preciso ouvir essa mulher, orientá-la sobre seus direitos e sobre as possibilidades para sair dessa situação e oferecer alternativas, como uma casa abrigo, uma Defensoria Pública, um serviço de saúde que vai oferecer um acompanhamento psicológico.”
Maria Amélia de Almeida Teles, coordenadora da União de Mulheres de São Paulo, ONG que desenvolve o projeto de formação e capacitação de Promotoras Legais Populares.
Para saber mais sobre os serviços:
Mapa da CPMI
Veja aqui os resultados da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre Violência contra a Mulher (CPMI-VCM) para saber mais a situação do enfrentamento à violência contra as mulheres nos Estados Brasileiros.
Pesquisa identifica principais desafios
Buscando entender quais obstáculos impedem que as mulheres em situação de violência tenham acesso à proteção do Estado prevista nos dispositivos legais, a ONG Cepia – Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação realizou um estudo comparativo sobre a aplicação da Lei Maria da Penha em cinco capitais.
Os principais desafios identificados na pesquisa, coordenada pela especialista Wânia Pasinato, estão em sintonia com a avaliação de quem está à frente das políticas públicas: expansão dos serviços pelo amplo território nacional; formação de equipes multidisciplinares capacitadas para atuar nesses serviços; e conscientização de todos os envolvidos nas áreas de Segurança e Justiça sobre a grave violação de direitos humanos que é a violência de gênero.
Confira os principais resultados da pesquisa e as recomendações geradas: Lei Maria da Penha continua a demandar uma ampla modernização dos Sistemas de Segurança e Justiça
10 informações que podem evitar equívocos frequentes
1) A Lei Maria da Penha define cinco formas de violência doméstica e familiar e não pressupõe que só há violência quando a agressão deixa marcas físicas evidentes. Reconhecer a violência psicológica e não subestimar o risco por trás de uma ameaça podem prevenir violências mais graves.
2) Na maioria dos casos, diferentes formas de violência acontecem de modo combinado. É preciso compreender que a violência física é só mais um traço de um contexto muito mais global de violência, que inclui também humilhações, críticas e exposição pública intimidade (violência moral), ameaças, intimidações, cerceamento da liberdade de ir e vir, controle dos passos da mulher (violência psicológica), forçar a ter relações sexuais ou a restrição da autodeterminação da mulher quando se trata de decidir quando engravidar ou levar adiante ou não uma gravidez (violência sexual). É fundamental também entender que a tendência, na violência doméstica, é que os episódios de agressões se repitam e fiquem mais graves.
3) É importante compreender que não existem padrões e perfis de vítima ou agressor: a violência doméstica contra mulheres cometida pelo parceiro, atual ou ex, é a mais comum, mas não é a única. E, embora apareçam como maioria nas pesquisas, os agressores não são apenas homens.
4) O uso de álcool, drogas ou o ciúme não são causas e não servem como justificativa para violências. São apenas fatores que podem contribuir para a eclosão do episódio de violência, e muitas vezes são usados como desculpa.
5) A culpa não é dá vítima: ninguém deve ser responsabilizado pela violência que sofreu.
6) A violência na relação íntima tem uma dinâmica complexa que coloca inúmeras dificuldades para o rompimento, como a desestruturação do cotidiano e até mesmo o risco de morte para a mulher. Por isso, é importante não julgar a mulher, nem demonstrar impaciência quando ela nega a agressão ou denuncia e depois volta atrás.
7) A mulher não está sozinha: embora ela tenha que ser a protagonista na superação do ciclo da violência, leis nacionais e tratados internacionais definem que é responsabilidade do Estado acolher e oferecer suporte para a mulher. A empresa em que ela trabalha também tem responsabilidades nesse sentido: se uma mulher está em situação de violência, por lei, ela tem garantia do emprego.
8) Toda mulher pode sofrer violência doméstica e familiar, independentemente de classe, idade, nível educacional. A Lei Maria da Penha reconhece justamente que os papéis de gênero construídos histórica e socialmente tornam as mulheres mais expostas a certos tipos de violência, como a doméstica e a sexual.
9) Nesse sentido, as varas e juizados especializados em violência doméstica podem e devem aplicar outras legislações protetivas, como o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Estatuto do Idoso.
10) Não há desigualdade em leis protetivas, pelo contrário: é exatamente para superar a lacuna entre os direitos previstos e a vivência de determinados sujeitos que surgem leis protetivas.