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Apresentação

“O estupro ofende as mulheres, não só no corpo possuído pelo prazer e ímpeto de tortura do agressor, mas principalmente porque nos aliena da única existência possível: a do próprio corpo.”
Debora Diniz, antropóloga, professora da Universidade de Brasília e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, em artigo publicado em 2013 no jornal O Estado de S. Paulo.

O estupro ainda vitima milhares de mulheres de todas as idades cotidianamente no Brasil e no mundo. Suas consequências para as vítimas são severas e desvastadoras: a violência sexual tem sérios efeitos nas esferas física e mental, no curto e longo prazos, conforme aponta a pesquisa Violência sexual: estudo descritivo sobre as vítimas e o atendimento em um serviço universitário de referência no Estado de São Paulo (Caderno de Saúde Pública, maio/2013).

Segundo o estudo, entre as consequências físicas imediatas estão a gravidez, infecções do aparelho reprodutivo e doenças sexualmente transmissíveis (DSTs). Em longo prazo, as mulheres podem desenvolver distúrbios na esfera da sexualidade, apresentando ainda maior vulnerabilidade para sintomas psiquiátricos, principalmente depressão, pânico, somatização, tentativa de suicídio, abuso e dependência de substancias psicoativas.

Além de afetar a saúde física e psíquica das vítimas, atinge toda a sociedade ao colocar o medo do estupro como um elemento da existência das mulheres que pode limitar suas decisões e, consequentemente, afetar seu pleno potencial de desenvolvimento e sua liberdade. Um levantamento realizado pela campanha Chega de Fiu Fiu com 7.762 mulheres internautas revelou, por exemplo, que 81% das participantes já deixaram de fazer alguma coisa de que gostaria, como sair a pé ou ir a algum lugar, por medo de sofrer assédio nas ruas.

De acordo com o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, promulgado no Brasil, a agressão sexual, escravidão sexual, prostituição, gravidez e esterilização forçadas ou qualquer outra forma de violência sexual de gravidade comparável constituem crimes contra a humanidade. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a violência sexual é um problema de saúde pública de escala global.

O que é

“A violência sexual é a mais cruel forma de violência depois do homicídio, porque é a apropriação do corpo da mulher – isto é, alguém está se apropriando e violentando o que de mais íntimo lhe pertence. Muitas vezes, a mulher que sofre esta violência tem vergonha, medo, tem profunda dificuldade de falar, denunciar, pedir ajuda.”
Aparecida Gonçalves, secretária nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República.

De acordo com a OMS, violência sexual é “qualquer ato sexual ou tentativa de obter ato sexual, investidas ou comentários sexuais indesejáveis, ou tráfico ou qualquer outra forma, contra a sexualidade de uma pessoa usando coerção”. Pode ser praticada, segundo o organismo, por qualquer pessoa, independentemente da relação com a vítima, e em qualquer cenário, incluindo a casa e o trabalho.

No Código Penal brasileiro

No Brasil, estupro é constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso – conforme definido no capítulo sobre os crimes contra a liberdade sexual do Código Penal, após as alterações promovidas em 2009 com a Lei nº 12.015.

Violência sexual na Lei Maria da Penha

A Lei Maria da Penha, por sua vez, descreve em seu artigo 7, alínea III, a violência sexual cometida em contexto de violência doméstica e familiar – ou seja, cometida por alguém da rede social da vítima e não por desconhecidos:

  • Qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força;
  • Que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade,
  • Que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação;
  • Ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos.

Em complemento ao Código Penal, a descrição na Lei Maria da Penha auxilia a evidenciar as diversas formas de violência sexual, que vão muito além do estupro. Isso é importante já que, segundo especialistas, estereótipos relacionados aos papéis sexuais, e exercidos desigualmente por homens e mulheres, ainda fazem, muitas vezes, uma violência desta gravidade não ser reconhecida.

“Os estereótipos geram falsas crenças e expectativas sobre o comportamento das pessoas. Uma das crenças alimentadas culturalmente é que as mulheres não podem desistir da relação sexual ‘no meio do caminho’. A crença expressa no jargão ‘ajoelhou tem que rezar’ implica uma comum naturalização do uso da força e do constrangimento contra a manifestação e o exercício autônomo da vontade. Como se o “sim” dito no cartório, no altar, no bar ou no motel impusesse à mulher um consentimento permanente, inquestionável, infalível, irretratável”.
Virgínia Feix, graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFRGS, especializada em Sociologia Jurídica e Direitos Humanos e autora do capítulo do livro Lei Maria da Penha Comentada em uma Perspectiva Jurídico-Feminista, Carmen Hein Campos (org.).

Segundo dados do Dossiê Mulher 2015, elaborado pelo Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, 31,3% dos casos de estupro de mulheres registrados no Estado em 2014 configuraram situações de violência doméstica/familiar. Esse universo representa 1.478 mulheres vítimas de violência sexual em contextos passíveis de aplicação da Lei Maria da Penha, somente no Rio de Janeiro.

Violência sexual no Brasil

“A violência sexual é um fenômeno universal, em que não existem restrições de sexo, idade, etnia ou classe social. Embora atinja homens e mulheres, as mulheres são as principais vítimas, em qualquer período de suas vidas. E as mulheres jovens e adolescentes apresentam risco mais elevado de sofrer esse tipo de agressão”.
Violência sexual: estudo descritivo sobre as vítimas e o atendimento em um serviço universitário de referência no Estado de São Paulo, por Cláudia de Oliveira Facuri et al. (Caderno de Saúde Pública, maio/2013).

Segundo o 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2015), em 2014, foram registrados 47.643 casos de estupro em todo o país. O dado representa um estupro a cada 11 minutos.

É importante lembrar que, além da conjunção carnal, desde 2009, com a alteração no Código Penal, atos libidinosos e atentados violentos ao pudor também passaram a configurar crime de estupro.

“O escândalo não está no crescimento em milhares de vítimas, mas na persistência do abuso. Uma mulher vitimada pelo estupro não é só alguém manchada na honra, como pensavam os legisladores do início do século 20 ao despenalizar o aborto por estupro, mas alguém temporariamente alienada da existência. Honra, dignidade, autonomia são ignoradas pelo estuprador, é verdade. Mas o estupro vai além: é um ato violento de demarcação do patriarcado nas entranhas das mulheres. É real e simbólico. Age em cada mulher vitimada, mas em todas as mulheres submetidas ao regime de dominação.”
Debora Diniz, antropóloga, professora da Universidade de Brasília e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero em artigo publicado em 2013 no jornal O Estado de S. Paulo.

O agressor da criança frequentemente é o pai, padrasto ou um conhecido

Segundo o relatório Estupro no Brasil, uma radiografia segundo os dados da Saúde (Ipea, 2014), 24% dos agressores das crianças são os próprios pais ou padrastos e 32% são amigos ou conhecidos da vítima. O agressor desconhecido passa a configurar como principal autor do estupro à medida que a idade da vítima aumenta, respondendo por 61% dos casos de estupro de pessoa adulta.

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Estupro cometido por parceiro íntimo

“Ainda não temos números das ocorrências de estupro doméstico porque, infelizmente, persiste na cultura brasileira uma ideia de que é obrigação da mulher ‘servir’ ao marido – então, muitas vezes, ela não reconhece a violência que sofre ou não denuncia o parceiro.”
Aparecida Gonçalves, secretária nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência.

Outro ponto que dificulta o levantamento estatístico da violência sexual é que no âmbito das relações afetivas, muitas vezes, o estupro não é identificado. Embora menos visibilizado, o crime pode ser cometido tanto por desconhecidos como por conhecidos, inclusive em relações como o namoro ou casamento.

Em levantamento recente realizado com 2.285 jovens de 14 a 24 anos – #meninapodetudo: machismo e violência contra a mulher (Énois Inteligência Jovem/Instituto Vladimir Herzog/Instituto Patrícia Galvão, 2015), 47% das entrevistadas relataram que já foram forçadas pelo parceiro a ter relações.

Mais de 500 mil pessoas são estupradas no Brasil a cada ano, estima o Ministério da Saúde

De acordo com a Nota Técnica Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde (Ipea, 2014), a partir de informações coletadas em 2011 pelo Sistema de Informações de Agravo de Notificação do Ministério da Saúde (Sinan), estima-se que no mínimo 527 mil pessoas são estupradas por ano no Brasil e que, destes casos, apenas 10% chegam ao conhecimento da polícia.

Os registros do Sinan mostram que 89% das vítimas são do sexo feminino e que 70% dos estupros são cometidos por parentes, namorados ou amigos/conhecidos da vítima.

“No Brasil, a maior parte das mulheres não registra queixa por constrangimento e humilhação, ou por medo da reação de seus conhecidos e autoridades. Também é comum que o agressor ameace a mulher de nova violência caso ela revele a que sofreu”.
Jefferson Drezett, médico e especialista em Ginecologia e Obstetrícia, no artigo “Violência sexual contra a mulher e impacto sobre a saúde sexual e reprodutiva”.

Assistência à mulher que foi estuprada

Dispensa do Boletim de Ocorrência em caso de estupro

A Norma Técnica: Atenção Humanizada ao Abortamento, lançada em 2005 pelo Ministério da Saúde, desobriga a mulher vítima de estupro a apresentar um Boletim de Ocorrência (BO) para dispor do direito de atendimento na rede de saúde. Segundo especialistas, isso tem o objetivo de trazer prioritariamente a mulher vítima de violência sexual para o ambiente de saúde, sem encaminhá-la em primeiro lugar a um órgão policial.

“O BO não prova nada, é apenas uma notícia do fato. Não se pode confundir assistência médica com inquérito policial. Ninguém pede para uma pessoa que foi quase assassinada uma prova de que sofreu tentativa de homicídio.”
José Henrique Torres, juiz de Direito, titular da 1ª Vara do Júri de Campinas/SP.

 

“Nunca houve necessidade do BO. Há apenas uma recomendação para que a mulher procure a delegacia. Não é uma obrigação, mas apenas um ato cívico, para que o infrator não fique impune.”
Osmar Colás, médico obstetra, professor da Unifesp e integrante do corpo médico do Hospital do Jabaquara/SP.
 

O BO pode ser uma impossibilidade para a vítima quando o agressor está dentro de casa

“É bom lembrar que uma jovem que denuncia um familiar próximo – pai, tio, padrasto – que a estuprou ou que a estupra regularmente é facilmente mandada de volta para casa, onde encara a vingança violenta de seu estuprador, sem amparo nenhum. Muito frequentemente, na decisão de denunciar, a jovem não encontra nem sequer o respaldo da mãe, cuja única preocupação, às vezes, consiste em preservar seu relacionamento com o pai ou padrasto.”
Contardo Calligaris, psicanalista, doutor em Psicologia Clínica.
 

Maioria dos estupros não deixa marcas de violência física

Um número significativo de estupros é praticado com uso de armas, força física e ameaças para aterrorizar as vítimas.

“Não dá para encontrar danos físicos na maioria dos casos, os estupros são praticados sob grave ameaça. Nesses casos, marcas de violência física simplesmente não existem. De 10 mil mulheres e adolescentes atendidas pelo serviço do Pérola Byington, apenas 11% apresentavam traumas físicos. Em 90% dos casos, elas não tinham nenhuma marca no corpo e, em 95%, nem sequer marcas nos genitais.”
Jefferson Drezett, médico e especialista em Ginecologia e Obstetrícia, coordenador do Serviço de Atenção a Vítimas de Violência Sexual do Hospital Pérola Byington (SP).
 

Por que a maioria dos estupros não é denunciada

Diferentes pesquisas revelam que são inúmeros os relatos de discriminação, preconceito e humilhação que as mulheres que sofrem violência sexual passam no processo de denúncia.

“A mulher teme, principalmente, não ser acreditada. Esse sentimento, aparentemente infundado, de fato se justifica. São incontáveis os relatos de discriminação, preconceito, humilhação e abuso de poder em relação às mulheres em situação de violência sexual.”
Jefferson Drezett, médico e especialista em Ginecologia e Obstetrícia, coordenador do Serviço de Atenção a Vítimas de Violência Sexual do Hospital Pérola Byington (SP).  

Dever de informar

A Lei nº 10.778/2003 estabeleceu a notificação compulsória dos casos de violência atendidos em serviços de saúde públicos ou privados, ou seja, o profissional que realiza o atendimento tem o dever de informá-lo ao Ministério da Saúde.

O bom atendimento às mulheres que buscam os serviços de saúde pode também encorajar a própria vítima a romper o silêncio.

“A melhor forma de encorajar a denúncia é aprimorar, cada vez mais, o atendimento às mulheres no primeiro contato. Se eu for respeitosamente recebida no serviço de saúde ou no serviço legal, vou ficar mais tranquila em retornar ali, me sentirei menos exposta e efetivamente cuidada. Serviços capacitados para atender essas mulheres como preconizado são essenciais.”
Cláudia de Oliveira Facuri, médica psiquiatra e pesquisadora do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.
 

Direito à interrupção da gravidez em caso de violência sexual

Quando a violência sexual resulta em gravidez, a vítima tem o direito ao aborto previsto no Código Penal. É obrigação do sistema público de saúde garantir as condições objetivas para que a interrupção da gestação ocorra de forma segura.

Estudo desenvolvido na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp revela que a maioria das mulheres não procura um serviço de emergência nas primeiras horas após a violência sexual. Esta procura acontece quando a mulher descobre que está grávida em consequência do estupro.

 “As vítimas não procuram o serviço por vergonha ou por desconhecerem a lei. A mulher não pediu para ser agredida sexualmente e, incrivelmente, se sente culpada, dizendo que não deveria estar na frente do portão da casa, no ônibus, com uma blusa decotada, em lugar ermo. Não é nada disso. Chega. Ela é uma vítima.”
Carolina Machado de Godoy, psicóloga e autora da pesquisa “Vivências de mulheres que sofreram violência sexual e solicitaram interrupção legal da gestação”, Faculdades de Ciências Médicas da Unicamp.

Anticoncepção de emergência 

“A maioria dos métodos anticonceptivos atua de forma a prevenir a gravidez antes ou durante a relação sexual. A Anticoncepção de Emergência (AE) é um método anticonceptivo que pode evitar a gravidez após a relação sexual. O método, também conhecido por “pílula do dia seguinte”, utiliza compostos hormonais concentrados e por curto período de tempo, nos dias seguintes da relação sexual. Diferente de outros métodos anticonceptivos, a AE tem indicação reservada a situações especiais ou de exceção, com o objetivo de prevenir gravidez inoportuna ou indesejada.”
Trecho da publicação “Anticoncepção de Emergência – Perguntas e respostas para profissionais de Saúde” (Ministério da Saúde, 2005).
 

A Anticoncepção de Emergência foi avalizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como medida essencial para se evitar a gravidez em consequência de estupro. A AE é utilizada com o conhecimento e o consentimento da vítima e impede a fecundação do óvulo. Especialistas afirmam que, quando a rede de saúde oferece o serviço de anticoncepção de emergência até antes de se completarem 72 horas do estupro, cai o número de abortos previstos por lei. 

Lei garante atendimento a vítimas de violência sexual

Desde 2013, o Brasil conta com a Lei nº 12.845/2013, que garante o atendimento obrigatório e imediato no Sistema Único de Saúde (SUS) a vítimas de violência sexual. De acordo com essa lei, todos os hospitais da rede pública são obrigados a oferecer, de forma imediata, a chamada pílula do dia seguinte, medicação que evita a fecundação do óvulo em até 72 horas após a relação sexual. A lei também garante para as vítimas de estupro o direito a diagnóstico e tratamento de lesões no aparelho genital; amparo médico, psicológico e social; profilaxia de doenças sexualmente transmissíveis, realização de exame de HIV e acesso a informações sobre seus direitos legais e sobre os serviços sanitários disponíveis na rede pública.

Esta lei complementa e dá maior sustentação jurídica a outras iniciativas do Governo Federal como o Decreto nº 7.958/2013 (humanização e adequação dos serviços de saúde e dos IMLs, incluindo a guarda da prova), a Lei nº 10.778/2003 (notificação compulsória dos casos de violência contra a mulher) e a Lei nº 10.886/2004 (tipificação da violência doméstica no Código Penal Brasileiro). A lei consolida, também, as normas técnicas do Ministério da Saúde que orientam a atenção e atendimento no Sistema Único da Saúde dos casos de violência sexual contra mulheres.

Impedir novas violências

Além dos desafios para o acolhimento adequado das vítimas no campo da saúde, os profissionais que atuam no atendimento lembram que estas medidas não previnem o crime de estupro, mas apenas buscam remediar seus graves efeitos.

“Para diminuir o número de estupros, a medida de saúde não resolve. O estuprador que não é punido vai estuprar de novo, além de poder encorajar outros a praticar essa violência perante a impunidade”,
Avelar de Holanda Barbosa, supervisor de Emergência Obstétrica do Hospital Materno-Infantil de Brasília (HMIB).

Com isso, os profissionais destacam a importância de fortalecer os outros serviços, sobretudo os de segurança, já que a tendência do autor de violência sexual é de repetição do crime, com a mesma vítima ou vitimando outras mulheres.

Revitimização e impunidade

A devida responsabilização de quem cometeu o estupro ainda enfrenta barreiras ideológicas nos Tribunais brasileiros – o que pode ser extremamente revitimizador para a mulher e, de um modo geral, estimular a aceitação à violência sexual.

“A baixa punibilidade é um padrão, como consta de relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH); há pouca utilização do Sistema de Justiça pelas mulheres vítimas, que não depositam confiança nas instâncias judiciais, o que acaba por reforçar a insegurança. Perpetua-se, assim, a naturalização da violência sexual contra as mulheres. A subnotificação dos crimes sexuais é uma realidade mundial.”
Kenarik Boujikian, desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo e cofundadora da Associação Juízes para a Democracia.

Exemplos que, muitas vezes, impedem o devido acesso à Justiça pelas mulheres:

1) Duvidar de quem denuncia

“Foi criada, em primeiro lugar, uma concepção falsa de que a mulher mente. Então, ela fala e tem que haver uma prova enorme para que sua palavra seja confirmada – e isso coloca a vítima em uma situação muito difícil, porque, além de estuprada, ela pode ser vista como mentirosa. Isso precisa ser mudado.”
José Henrique Rodrigues Torres, juiz do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Embora especialistas e vários estudos mostrem que o estigma e o trauma gerados pelo estupro estimulam um pacto de silêncio e a subnotificação deste crime, é comum que se desconfie exageradamente da palavra da mulher que denuncia. O problema atinge um ponto em que, muitas vezes, a vítima é quem acaba sendo interrogada.

“A mulher tem que estar muito fortalecida e amparada para enfrentar uma situação dessas. Ela vai sofrer críticas, a palavra dela vai ser questionada. E ela não vai fazer isso sem apoio. Se a mulher estiver sozinha é perfeitamente compreensível que ela não consiga enfrentar o processo.”
José Henrique Rodrigues Torres, juiz do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Diante deste cenário de adversidades, a mulher pode ter que repetir inúmeras vezes o relato da violência sofrida, revivendo uma situação traumática – o que pode ainda agravar um quadro que já traz diversos problemas de saúde para a mulher, conforme alertam profissionais da área. Além disso, o testemunho da vítima é considerado uma das principais provas em casos de violência sexual e, portanto, são importantes para a devida responsabilização criminal.

“Os processos de crimes sexuais, sabidamente praticados de forma clandestina – pois a violação da dignidade da mulher geralmente ocorre em locais fechados, sem possibilidade de presença de testemunhas, têm na palavra da vítima a viga mestra. Por certo ela não está isenta dos requisitos de verossimilidade, coerência e plausibilidade. Mas, nestes delitos, a declaração coerente da vítima deve ter valor decisivo.”
Kenarik Boujikian, desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo e cofundadora da Associação Juízes para a Democracia.

2) Colocar em foco o comportamento de quem foi vítima – e não autor – de um crime hediondo

“A nossa sociedade impõe algumas regras e comportamentos às mulheres e toda vez que uma mulher quer romper com esse paradigma imposto há margem para acontecer uma violência.”
Adriana Ramos de Mello, juíza titular do 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

É bastante comum nos casos de violência sexual que a atribuição social de supostos papéis femininos e masculinos faça com que o comportamento de quem foi vítima é que seja questionado.

“Você consegue imaginar uma senhora de meia idade atacando um homem jovem numa rua deserta? Se um homem é atacado por uma mulher na rua, ela é quem será chamada de louca, desesperada. Ele pode até sentir uma ponta de vaidade, por parecer ‘irresistível’. Quando uma mulher é atacada por um homem, questiona-se se ela vestia roupas sensuais, se agiu de modo insinuante, se o seduziu.

Por um lado, espera-se que as mulheres saibam controlar seus impulsos e desejos ou mesmo que nem sintam esses desejos. Por outro, imagina-se que os homens sejam movidos por uma força incontrolável que é despertada pela sensualidade feminina.

Ou seja, as mulheres acabam sendo responsabilizadas por dominar seus próprios desejos e, ao mesmo tempo, zelar pelo desejo de todos os homens com quem elas se encontram.”
Bárbara Musimeci Soares, Cesec Universidade Cândido Mendes, no livro Sexualidade, Corpo, Desejo e Cultura (SBPC, 2001).

“A questão de gênero na violência sexual aparece muito associada ao que se espera de uma mulher ‘recatada’. Então, se a mulher não faz aquilo que se espera dela do ponto de vista de uma moral sexual, ela está em risco e talvez acabe sendo apontada como culpada pelos outros pela própria violência que sofreu.”
Beatriz Accioly, antropóloga e pesquisadora, integrante do Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

“Existe, por exemplo, o estereótipo da hipersexualização da mulher: é como se uma mulher que já fez sexo uma vez fosse estar sempre disposta, a fim de sexo, e sua autonomia de escolher quando e com quem se relacionar não é respeitada.”
Heloísa Buarque de Almeida, professora do Departamento de Antropologia Social da Universidade de São Paulo.

“Há pensadores científicos que dizem que a violação é natural, é uma necessidade masculina, física e biológica, que não é por isso que temos que aceitá-la, mas há que reconhecer que é algo que vem da natureza. Mas não são todos os homens que violam. Se é algo biológico, porque há tantos homens que não violam? Aí está a brecha para se entender de onde vem o machismo. Eu trabalhei com homens violentos, nosso desafio não é mudar sua biologia e sim seu pensamento.”
Matthew Guttmann, antropólogo especialista em masculinidades da Universidade Brown, dos Estados Unidos.

Conivência institucional

“Às vezes, nosso olhar se desvia das formas mais comuns de violência contra mulheres e meninas: quando elas entram em um posto de saúde, quando estão grávidas, quando são insultadas por seus professores ou quando sofrem tortura sexual pelos agentes de segurança. Olhamos apenas a violência que não é perpetrada pelo Estado, mas por parceiros íntimos.
Tracy Robinson, relatora sobre os direitos das mulheres da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da OEA.

Recentemente, as denúncias sobre repetidos abusos sexuais e discriminações na Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) trouxeram à tona o peso da omissão institucional na naturalização e reprodução da violência.

Casos como o da FMUSP são recorrentes, tanto no País quanto fora dele. Nos Estados Unidos o Departamento de Educação investiga 86 instituições de ensino superior por supostamente ignorarem casos de violência sexual em suas dependências.

Parte de um legado histórico, em que o Brasil convivia com leis e práticas que subjugavam os direitos humanos, a omissão institucional perante o estupro ainda acontece e faz parte de um sistema estrutural que, muitas vezes, é conivente com a violência sexual contra as mulheres.


Violência institucional

No capítulo “Violência sexual, violência de gênero e violência contra as mulheres e crianças” do relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), a violência sexual é identificada como método de tortura física e psicológica adotado como política institucional de Estado durante a Ditadura Militar. Diz o relatório:

“O fato de os crimes terem sido cometidos por agentes públicos encarregados de proteger a sociedade, a vida e a integridade física de seus cidadãos os fez aumentar o sofrimento da maioria dos sobreviventes, que ainda hoje padecem ao lidar com o estigma em torno dos crimes sexuais, a indiferença da sociedade e a impunidade dos violadores.”

Em episódio mais recente, o deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) teve o pedido de cassação de seu mandato protocolado por parlamentares, especialistas e organizações dos movimentos de mulheres após fazer menção ao estupro como prática possível em plena atividade parlamentar.

“Eu falei que não estuprava você porque você não merece. Fica aqui para ouvir, Maria do Rosário”. A frase, repetida pelo deputado Jair Bolsonaro em pronunciamento oficial na Câmara dos Deputados em dezembro de 2014 gerou indignação e manifestações de repúdio por parte de diversos setores da política e da sociedade, já que estupro não é ‘castigo’ ou questão de ‘merecimento’, é crime hediondo. 

Quando a lei não protege

Antes das alterações introduzidas pela Lei nº 12.015/2009, o próprio Código Penal brasileiro, datado de 1940, reproduzia boa parte dos estereótipos que estão nas raízes de graves violações dos direitos humanos das mulheres.

No capítulo dos então chamados ‘Crimes contra os Costumes’, a mulher, de um modo geral, não tinha seu poder de decisão ou o direito de exercer livremente a própria sexualidade reconhecidos. Comumente equiparadas aos menores de idade, também eram criadas hierarquias entre as mulheres, de modo que a lei tutelava mais a mulher considerada ‘honesta’ ou ‘virgem’. Com isso, existiam aburdos jurídicos, tanto na norma, quanto na sua aplicação prática.

“As leis são feitas por homens, são pensadas com enfoque masculino. Então, o Direito tem lado na desigualdade de gênero sim. É preciso lembrar que entre os parlamentares brasileiros – aos quais cabem legislar, menos de 10% são mulheres.”
Adriana Ramos de Mello, juíza titular do 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

“Também cabe lembrar que a legislação brasileira, até 2005, promoveu a representação social e cultural sobre a ‘mulher honesta’, identificada a partir de sua adesão, ou não, a um padrão sexual estabelecido por atributos exigidos somente para as mulheres: a virgindade, a fidelidade, o recato e a responsabilidade pela gravidez não planejada. Nesse sentido, também é preciso ter presente que o direito a relações sexuais baseadas na igualdade, no respeito e na justiça muitas vezes é negado a mulheres, como se, entre elas, as supostamente ‘desonestas’ pudessem ser tratadas com violência, desrespeito, negligência.”
Virgínia Feix, graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFRGS, especializada em Sociologia Jurídica e Direitos Humanos e autora do capítulo do livro Lei Maria da Penha Comentada em uma Perspectiva Jurídico-Feminista, Carmen Hein Campos (org.).

Combater a culpabilização das vítimas

“Precisamos em primeiro lugar ver e fazer ver os casos de violência, acolhendo as vítimas, combatendo a sua culpabilização e responsabilizando os agressores. É necessário também campanhas de educação e reflexão para que a sexualidade de homens e mulheres possa ser reconhecida e valorada como uma dimensão importante e positiva da vida e possa ser exercida de forma livre e responsável em relação a si mesma/o e a outras/os”.
Ana Flávia D’Oliveira, médica e pesquisadora do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Nesse contexto, especialistas indicam que é preciso promover a desnaturalização de todo um legado discriminatório contra as mulheres em relação a supostos papéis de gênero e padrões rígidos e desiguais de exercício da sexualidade.

No caso da Faculdade de Medicina da USP, por se tratar de um dos cursos universitários mais concorridos do Brasil, ficou patente como a cultura de violência contra as mulheres é disseminada e, independe, inclusive, de acesso à educação formal.

“Estes casos precisam ser denunciados para mostrar que isso não acontece só nas classes populares e nem com quem tem pouca educação, porque está acontecendo nas universidades. É necessário criar uma espécie de pauta dos direitos humanos em vários cursos, promovendo o enfrentamento à homofobia, ao racismo e ao machismo. As minorias são muito fragilizadas e isso é assustador.”
Heloísa Buarque de Almeida, professora do Departamento de Antropologia Social da Universidade de São Paulo.

Dois pontos importantes destacados em campanhas para coibir a violência sexual:

1) Sexo sem consentimento é estupro

“É preciso ensinar para os rapazes a cultura do consentimento. O cara tem que entender que se a mulher está bêbada, desacordada, ele não pode abusar dela. Sexo sem consentimento é estupro e é muito difícil falar sobre isso no Brasil, porque a ideia do ‘quem mandou beber até cair, a culpa é dela’, infelizmente, ainda é muito difundida. Muitos abusos acontecem com meninas embriagadas e que não têm como reagir. E muitos problemas aparecem pela dificuldade dos rapazes de entender a noção de consentimento. Pela masculinidade generalizada eles se sentem no direito de abusar das meninas e várias delas se viam como culpadas.
Heloísa Buarque de Almeida, professora do Departamento de Antropologia Social da Universidade de São Paulo

Persiste ainda um senso comum bastante difundido de que, se a mulher não reagiu ou negou veementemente o sexo, não houve estupro, ignorando-se as diferentes reações que uma pessoa pode ter numa situação traumatizante de ameaça e força, como lutar ou paralisar.

2) Assédio sexual

O assédio, especialmente o das ruas, é um desrespeito à dignidade das mulheres. Vinculado a conceitos retrógrados de classificação das mulheres entre as “de casa” e as “da rua”, o assédio nos espaços fora do ambiente doméstico familiar é uma forma de constrangimento ao direito de ir e vir das mulheres. Ele extrapola o interesse interpessoal, pois coloca todas as mulheres como objetos, igualmente disponíveis para o exercício da sexualidade do homem, somente por estarem ocupando os espaços públicos.

“Ninguém deveria ter medo de caminhar pelas ruas simplesmente porque nasceu mulher. Mas, infelizmente, isso é algo que acontece todos os dias. E é um problema invisível. Pouco se discute e quase nada se sabe sobre o tamanho e a natureza do problema”. De acordo com o site Think Olga, esses foram os motivos que instigaram a campanha Chega de Fiu Fiu, de combate ao assédio sexual em espaços públicos.
Um dos obstáculos da campanha é a frequente confusão entre agressão e elogio, e ela foi até acusada de tentar acabar com o flerte. O fato de alguém não ser capaz de diferenciar assédio sexual de relações românticas naturais já mostra como o assunto é problemático. A verdade é que não é nada difícil diferenciar um do outro. Elogio demonstra respeito, assédio constrange e humilha.”
Juliana de Faria, jornalista e uma das idealizadoras da campanha Chega de Fiu Fiu no artigo Masculinidades sufocadas?

Assédio sexual x paquera. “É essencial que qualquer investida sexual tenha o consentimento da outra parte, o que não acontece quando uma mulher leva uma cantada”, diz o folheto “Vamos falar sobre assédio sexual”, elaborado pelo Núcleo Especializado de Defesa e Promoção dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, em parceria com o blog Think Olga, que lista os exemplos de assédio sexual que, segundo a lei, podem ser configurados como crime, de acordo com o comportamento do assediador:

Assédio sexual: O assédio caracteriza-se por constrangimentos e ameaças com a finalidade de obter favores sexuais feita por alguém de posição superior à vítima. (conforme art. 216-A.do Código Penal)
Importunação ofensiva ao pudor: é o assédio verbal, quando alguém diz coisas desagradáveis e/ou invasivas (as famosas “cantadas”) ou faz ameaças. Tais condutas também são formas de agressão e devem ser coibidas e denunciadas. (Conforme Art. 61 da Lei nº 3688/1941
Estupro: tocar as partes íntimas de alguém sem consentimento também pode ser enquadrado como estupro, dentre outros comportamentos. (Conforme Art. 213 do Código Penal: Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso)
Ato obsceno: é quando alguém pratica uma ação de cunho sexual (como por exemplo, exibe seus genitais) em local público, a fim de constranger ou ameaçar alguém. (Conforme Art. 233 do Código Penal).”
Folheto “Vamos falar sobre assédio sexual” (Núcleo de Defesa dos Direitos da Mulher DPSP/Think Olga