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Apresentação

“Não é a violência que cria a cultura, mas é a cultura que define o que é violência. Ela é que vai aceitar violências em maior ou menor grau a depender do ponto em que nós estejamos enquanto sociedade humana, do ponto de compreensão do que seja a prática violenta ou não.”
Luiza Bairros, doutora em Sociologia pela Universidade de Michigan e ex-ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (Seppir).

Assédio, exploração sexual, estupro, tortura, violência psicológica, agressões por parceiros ou familiares, perseguição, feminicídio. Sob diversas formas e intensidades, a violência contra as mulheres é recorrente e presente em muitos países, motivando graves violações de direitos humanos e crimes hediondos.

“É inaceitável que uma em cada três mulheres no mundo sofra violência em algum momento de suas vidas”.
Phumzile Mlambo-Ngcuka, subsecretária geral das Nações Unidas e diretora executiva da ONU Mulheres.

 A persistência das discriminações contra as mulheres revela a necessidade urgente de um profundo olhar sobre suas raízes associado a um maior compromisso para coibir normas que fixam lugares rígidos para mulheres e homens na sociedade e que agem como fortes barreiras para a efetivação de direitos. As desigualdades de gênero estão, ainda, nas raízes de sofrimento físico e mental, violação e morte que atingem bilhões de mulheres de todas as idades, raças, etnias, religiões e culturas.

“A violência contra as mulheres é mais presente do que se imagina, aqui e em qualquer parte do planeta, não conhece barreiras geográficas, econômicas e sociais, e acontece cotidianamente.”
Jacira Melo, mestre em Ciências da Comunicação e diretora executiva do Instituto Patrícia Galvão.

Reconhecimento

Todos os dias, um grande número de mulheres, jovens e meninas são submetidas a alguma forma de violência, no Brasil e no mundo.

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Violências sistêmicas contra as mulheres são a manifestação extrema de diversas desigualdades historicamente construídas, que vigoram, com pequenas variações, nos campos social, político, cultural e econômico da maioria absoluta das sociedades e culturas.

“A violência contra as mulheres ainda acontece todos os dias em todos os países. Temos que entender as causas e saber o que fazer para eliminá-la. Pôr fim à violência contra mulheres e meninas é um dos mais importantes objetivos deste século.”
Ban Ki-moon, secretário-geral da Organização das Nações Unidas

Apesar da gravidade do problema, nas diferentes regiões do planeta, a falta de compreensão sobre as desigualdades e as relações de poder que são construídas junto aos papéis associados ao gênero masculino e feminino leva à negação de direitos e diferentes níveis de tolerância social à violência, gerando, assim, ainda mais violência.

“Infelizmente mantém-se até hoje o paradigma de banalização da violência às mulheres.”
Eleonora Menicucci, ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República.

Falar de violência é falar de relações entre pessoas circunscritas em normas de gênero específicas (saiba mais). É importante frisar também que as desigualdades socialmente estabelecidas para os comportamentos “femininos” e “masculinos” são articuladas com outros marcadores sociais na produção de desigualdades e violências.

E, por isso, é fundamental desnaturalizar papéis para construir uma cultura de respeito aos direitos humanos das mulheres em sua diversidade.

“As múltiplas formas de violência contras as mulheres estão baseadas ainda em sistemas de desigualdades que se retroalimentam, sobretudo em relação às questões de gênero, raça, etnia, classe, orientação sexual e identidade de gênero”.
Marai Larasi, diretora executiva da Imkaan, organização não-governamental feminista negra, e da End Violence Against Women Coalition (Coalizão de Combate à Violência contra Mulheres), sediadas no Reino Unido.

Avanços e desafios no Brasil

No Brasil, o quadro não é menos preocupante. A construção de comportamentos legitimados socialmente para homens e mulheres cria e perpetua espaços para que as violências aconteçam sempre que uma pessoa não se encaixa nos padrões esperados. Diferenças, assim, são transformadas em desigualdades e não em pluralidade.

“Há machos e fêmeas na espécie humana, mas a maneira de ser homem e de ser mulher é realizada pela cultura. Homens e mulheres são produtos da realidade social e não apenas da natural. É a cultura que humaniza a espécie. E a dimensão biológica da espécie humana é transformada pela necessidade de capacitação cultural, essencial à sobrevivência. Mas, sabemos que existem masculinidades e feminilidades hegemônicas, que aparecem como se fossem produto da natureza, mas não são. No Brasil, por exemplo, entre jovens, o acesso à masculinidade plena se dá através da iniciação sexual com uma mulher, para que ele seja reconhecido como um homem heterossexual e, portanto, participe dessa masculinidade hegemônica. Aqueles que agem de forma diferente, não têm o comportamento esperado pelos outros, é feminilizado e diminuído. Há também um desenvolvimento da estrutura psíquica masculina — do ponto de vista cultural, não de indivíduos em particular — que está pouco preparada para receber a rejeição feminina. As meninas, por outro lado, são incitadas a se hipersexualizarem para chegarem a uma feminilidade hegemônica”.
Maria Luiza Heilborn, professora do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Esses papéis rígidos concorrem não só para que a violência aconteça, mas também se perpetue. Nas diferentes formas de violência abordadas neste Dossiê é possível identificar que a discriminação com a condição feminina age para manutenção da situação de violência. Fazem com que, muitas vezes, a violência sequer seja reconhecida por quem a pratica e por quem sofre. Também para que, quando reconhecida, permaneça silenciada. E ainda para que, quando visibilizada e denunciada, seja minimizada por profissionais que, pouco sensibilizados, reproduzem padrões discriminatórios nos próprios serviços criados para garantir os direitos das mulheres.

“Quando se trata de violência contra as mulheres, temos que inserir nessa equação os homens, para discutir os sentidos do que seja a masculinidade e de como a violência é importante para a constituição da masculinidade na sociedade brasileira.”
Luiza Bairros, ex-ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (Seppir-PR).

O quadro se agrava diante de um histórico de colonização e desenvolvimento econômico estruturalmente baseado em relações racializadas – o Brasil está há 127 anos fora do regime escravista, contra 388 anos sob a escravidão legal. Passou, ainda, por duas Ditaduras somente no período republicano, em que a violência, inclusive contra as mulheres, foi institucionalizada.

Como exemplos da construção dos lugares desiguais de homens e mulheres na sociedade, a legislação do Brasil Colônia dava aos maridos o direito de assassinar as mulheres. E o Código Civil que vigorou de 1916 a 2002 considerava mulheres casadas como “incapazes”. Assim como ocorreu com a escravidão, que legalizava o tratamento a seres humanos negros e negras como “coisas”. O que na atualidade é reconhecidamente absurdo, já foi legal.

Especialistas apontam que o País registrou avanços significativos nas últimas décadas. Ratificou a Convenção de Belém do Pará – como ficou conhecida a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra Mulher. A convenção é considerada um marco no enfrentamento à violência contra as mulheres, já que ela exige dos Estados um compromisso efetivo na erradicação da violência de gênero a partir da criação de legislação específica – campo em que o Brasil tornou-se referência com a promulgação da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340), em 2006.

A conjugação das normas internacionais com leis nacionais foi essencial para tirar a violação dos direitos humanos das mulheres da invisibilidade. Descortinar o problema, porém, é apenas o primeiro passo de um longo processo de transformação que inclui a criação de serviços específicos para atendimento àquelas que tiveram seus direitos violados, o fomento à capacitação de pessoal e a modificação de padrões socioculturais.

“Em um primeiro momento da Convenção, foi dado enfoque prioritário para as questões da Segurança e da Justiça. Mas não podemos atuar só depois que a violência já aconteceu; é preciso agir para que ela não aconteça e, para isso, as mentalidades precisam mudar. Devemos abordar os três olhares: o da prevenção, da atenção à mulher em situação de violência e também o da punição, porque não se pode banalizar esse crime, que é uma grave violação de direitos humanos”. (saiba mais)
Leila Linhares Barsted, advogada e representante brasileira do Mecanismo de Acompanhamento da Implementação da Convenção de Belém do Pará.

Prevenção

Nesse sentido, especialistas destacam: é preciso reconhecer as diferentes formas de violência, dimensionar este grave problema social e, assim, avançar em concepções e práticas que revertam o quadro discriminatório que autoriza e perpetua agressões reiteradas contra mulheres e meninas.

Para erradicar a violência contra as mulheres que acontece no espaço público e privado, e que tem se perpetuado de geração em geração, é preciso se debruçar sobre as causas, sobre as raízes culturais dessa violência.
Em várias partes do mundo, nos últimos 30, 40 anos, o que se tem focalizado especialmente são os efeitos e conseqüências: o abuso sexual de meninas, o estupro, a violência doméstica, o assassinato de mulheres pelos seus parceiros íntimos etc. Algo que tem sido fundamental, diante da gravidade da violência contra as mulheres no Brasil e no mundo. Agora, associada a essas ações de exigência para acesso à justiça por parte das mulheres, é também preciso maior ênfase no debate sobre as culturas da violência para se conseguir exigir mudanças de comportamento e mentalidade nos padrões de socialização.”
Jacira Melo, mestre em Ciências da Comunicação e diretora executiva do Instituto Patrícia Galvão.

É importante, assim, entender o papel que as masculinidades (ou diversos comportamentos tidos como “naturais” entre os homens) e feminilidades (padrões instituídos como “inatos” das mulheres) cumprem na reprodução da violência. Pois, embora sejam internalizadas em nós desde que nascemos, as normas sociais mudam historicamente, portanto, podem e devem ser questionadas se trazem resultados negativos.

“A sociedade como um todo e a imprensa em particular têm um papel fundamental no debate sobre como a reprodução de estereótipos gera barreiras à efetivação de direitos, desestimula a denúncia, culpabiliza a mulher pela violência sofrida e a revitimiza.É preciso debater com a juventude, abordar as masculinidades e formas como as desigualdades de gênero se reproduzem inclusive nas escolas.” (saiba mais)
Nadine Gasman, representante da ONU Mulheres no Brasil.

Entre as ações para mudar este quadro, especialistas enumeram: é necessário envolver os homens na superação dessa cultura violenta; reconhecer e dar atenção para as formas institucionais de violência perpetradas pelo Estado; assegurar o protagonismo das mulheres por meio de políticas públicas de educação, autonomia econômica e financeira, equidade no trabalho doméstico e no trabalho remunerado; cobrar respostas do Poder Público e da iniciativa privada nesse sentido; assim como garantir o investimento na expansão com qualidade da rede de atenção e enfrentamento à violência (saiba mais).

“Precisamos dar muita ênfase às medidas preventivas, como a capacitação de profissionais, mas também campanhas junto à sociedade, à mídia, a todos os órgãos do Poder Judiciário e do sistema de Segurança Pública, para aprofundar a reflexão do que significa a violência contra as mulheres e estimular mudanças significativas em todas as dimensões.”
Maria Amélia de Almeida Teles, bacharel em Direito e coordenadora da União de Mulheres de São Paulo e do Programa de Promotoras Legais Populares.