O assassinato de mulheres em contextos marcados pela desigualdade de gênero recebeu uma designação própria: feminicídio. No Brasil, é também um crime hediondo. Nomear e definir o problema é um passo importante, mas para coibir os assassinatos femininos é fundamental conhecer suas características e, assim, implementar ações efetivas de prevenção.
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O assassinato de mulheres em contextos discriminatórios recebeu uma designação própria: feminicídio. Nomear o problema é uma forma de visibilizar um cenário grave e permanente: milhares de mulheres são mortas todos os anos no Brasil. De acordo com o Mapa da Violência 2015, em 2013 foram registrados 13 homicídios femininos por dia, quase cinco mil no ano [Veja mais dados]. Ainda assim, o enfrentamento às raízes dessa violência extrema não está no centro do debate público com a intensidade e profundidade necessárias diante da gravidade do problema.
O feminicídio é a expressão fatal das diversas violências que podem atingir as mulheres em sociedades marcadas pela desigualdade de poder entre os gêneros masculino e feminino e por construções históricas, culturais, econômicas, políticas e sociais discriminatórias.
A subjugação máxima da mulher por meio de seu extermínio tem raízes históricas na desigualdade de gênero e sempre foi invisibilizada e, por consequência, tolerada pela sociedade. A mulher sempre foi tratada como uma coisa que o homem podia usar, gozar e dispor.” Marixa Fabiane Lopes Rodrigues, juíza de Direito do Tribunal de Justiça de Minas Gerais.
Essas desigualdades e discriminações podem se manifestar desde o acesso desigual a oportunidades e direitos até violências graves – alimentando a perpetuação de casos como os assassinatos de mulheres por parceiros ou ex que, motivados por um sentimento de posse, não aceitam o término do relacionamento ou a autonomia da mulher; aqueles associados a crimes sexuais em que a mulher é tratada como objeto; crimes que revelam o ódio ao feminino, entre outros. [Saiba mais: Como morrem as mulheres]
Trata-se de um crime de ódio. O conceito surgiu na década de 1970 com o fim de reconhecer e dar visibilidade à discriminação, opressão, desigualdade e violência sistemática contra as mulheres, que, em sua forma mais aguda, culmina na morte. Essa forma de assassinato não constitui um evento isolado e nem repentino ou inesperado; ao contrário, faz parte de um processo contínuo de violências, cujas raízes misóginas caracterizam o uso de violência extrema. Inclui uma vasta gama de abusos, desde verbais, físicos e sexuais, como o estupro, e diversas formas de mutilação e de barbárie.” Eleonora Menicucci, socióloga e professora titular de saúde coletiva da Universidade Federal de São Paulo, foi ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres entre 2012 e 2015.
O conceito ganhou destaque entre ativistas, pesquisadoras, organismos internacionais e, mais recentemente, tem sido incorporado às legislações de diversos países da América Latina – inclusive do Brasil, com a criação da Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104/2015) [saiba mais] – na perspectiva de tirar essas raízes discriminatórias da invisibilidade e coibir a impunidade. Também para ressaltar a responsabilidade do Estado nesse cenário que, por ação ou omissão, é conivente com a persistência da violência contra as mulheres, inclusive quando ela se perpetua até o extremo da letalidade.
O feminicídio pode ser entendido como um novo tipo penal, ou seja, aquilo que está registrado na lei brasileira como uma qualificadora do crime de homicídio. Mas, ele pode ser entendido também no sentido mais amplo, no seu aspecto sociológico e histórico. Nesse sentido, feminicídio é uma palavra nova, criada para falar de algo que é persistente e ao mesmo tempo terrível: que as mulheres sofrem violência ao ponto de morrerem.” Debora Diniz, antropóloga, professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética.
Feminicídio: definições e alguns aspectos importantes
No Código Penal brasileiro, o feminicídio está definido como um crime hediondo, tipificado nos seguintes termos: é o assassinato de uma mulher cometido por razões da condição de sexo feminino, quando o crime envolve violência doméstica e familiar e/ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
Nomear e definir o problema é um passo importante, mas para coibir o crime é fundamental conhecer as características dos feminicídios, construindo um entendimento de que se tratam de mortes decorrentes da desigualdade de gênero e que, muitas vezes, o assassinato é o desfecho de um histórico de violências. Com isso, os feminicídios são considerados mortes evitáveis – ou seja, que não aconteceriam sem a conivência institucional e social às discriminações e violências contra as mulheres. Outro aspecto importante, neste contexto, é a responsabilidade do Estado que, por ação ou omissão, compactua com a perpetuação destas mortes [Saiba mais: Porque feminicídio].
Diante da pressão crescente da sociedade civil, que vinha denunciando a omissão e a responsabilidade do Estado na perpetuação do feminicídio, e de organizações internacionais, que reiteravam recomendações para que os países adotassem ações contra os homicídios de mulheres nesta frente, a partir dos anos 2000 diversas nações latino-americanas incluíram o feminicídio em suas legislações [saiba mais no vídeo abaixo].
Legislações na América Latina
Enquanto alguns países tipificaram o feminicídio por meio de reformas nos códigos penais vigentes, outros estabeleceram agravantes para o assassinato de mulheres por motivação de gênero [Saiba mais].
No Brasil, o crime de feminicídio foi definido legalmente desde a entrada em vigor da Lei nº 13.104 em 2015, que alterou o art. 121 do Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848/1940), para incluir o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio.
Assim, segundo o Código Penal, feminicídio é “o assassinato de uma mulher cometido por razões da condição de sexo feminino”, isto é, quando o crime envolve: “violência doméstica e familiar e/ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher” [Saiba mais]. A pena prevista para o homicídio qualificado é de reclusão de 12 a 30 anos.
Ao incluir o feminicídio como circunstância qualificadora do homicídio, o crime foi adicionado ao rol dos crimes hediondos (Lei nº 8.072/1990), tal qual o estupro, genocídio e latrocínio, entre outros.
Crimes hediondos são os crimes que o Estado entende como de extrema gravidade, aqueles que causam mais aversão à sociedade, e, portanto, que merecem um tratamento diferenciado e mais rigoroso do que as demais infrações penais.
Para além do aumento penal, o aspecto mais importante da tipificação, segundo especialistas, é a oportunidade aberta para que se dê visibilidade ao feminicídio e, ao mesmo tempo, se conheça de modo mais acurado sua dimensão e características nas diferentes realidades vividas pelas mulheres no Brasil, permitindo assim o aprimoramento das políticas públicas para coibi-lo e atuar de modo preventivo.
O feminicídio é a ponta do iceberg. Não podemos achar que a criminalização do feminicídio vai dar conta da complexidade do tema. Temos que trabalhar para evitar que se chegue ao feminicídio, olhar para baixo do iceberg e entender que ali há uma série de violências. E compreender que quando o feminicídio acontece é porque diversas outras medidas falharam. Precisamos ter um olhar muito mais cuidadoso e muito mais atento para o que falhou.” Carmen Hein de Campos, advogada doutora em Ciências Criminais e consultora da CPMI que investigou a violência contra as mulheres no Brasil.
Perspectiva de gênero é essencial para compreensão da Lei
A Lei que incluiu o feminicídio no Código Penal brasileiro foi criada a partir de uma recomendação da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre Violência contra a Mulher (CPMI-VCM), que investigou a violência contra as mulheres nos Estados brasileiros entre março de 2012 e julho de 2013.
A proposta de lei feita pela Comissão definia feminicídio como a forma extrema de violência de gênero que resulta na morte da mulher, apontando como circunstâncias possíveis a existência da relação íntima de afeto ou parentesco entre o autor do crime e a vítima; a prática de qualquer tipo de violência sexual contra a vítima, antes ou após a morte; e mutilação ou desfiguração da mulher, também antes ou após a morte.
O texto sofreu alterações na tramitação na Câmara e no Senado e, no momento da aprovação no Congresso Nacional, diante de pressões de parlamentares da bancada religiosa, a palavra ‘gênero’ foi retirada da Lei. De todo modo, compreender as desigualdades que concorrem para que as mortes violentas aconteçam continua sendo essencial para a correta aplicação da Lei e, principalmente, para a atuação preventiva.
Os operadores do Direito entrevistados neste Dossiê são unânimes em apontar que a perspectiva de gênero é fundamental para a compreensão das duas circunstâncias incluídas no Código Penal para qualificar o feminicídio – ou seja, violência doméstica e familiar, como define a Lei Maria da Penha, ou em outras situações que revelam a situação de menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
Qual é a importância da palavra gênero? Ela é importante porque é uma categoria relacional. No caso da ‘condição do sexo feminino’, acaba ficando muito forte a ideia de que sexo é um conceito biológico, natural, e ocultando que há relações desiguais de poder que são construídas cultural e socialmente e que resultam repetidamente em violências. Entender isso é fundamental para o enfrentamento dessas violências.” Ela Wiecko, vice-procuradora-geral da República.
O que é gênero?
Segundo as Diretrizes Nacionais para Investigar, Processar e Julgar com Perspectiva de Gênero as Mortes Violentas de Mulheres – Feminicídios, gênero se refere a construções sociais dos atributos femininos e masculinos definidos como papéis de gênero. Os papéis de gênero podem ser descritos como comportamentos aprendidos em uma sociedade, comunidade ou grupo social, nos quais seus membros são condicionados a considerar certas atividades, tarefas e responsabilidades como sendo masculinas ou femininas.
Esses papéis são reproduzidos por atitudes, comportamento, valores e hábitos que variam segundo a idade, classe, raça, etnia, classe social, situação econômica, religião ou outras ideologias, assim como pelo meio geográfico e os sistemas econômico, cultural e político de cada sociedade.
Esses papéis, portanto, vão se materializar de diferentes maneiras históricas e culturais, variando no tempo e no espaço, entre países e dentro de um mesmo país. Alimentam discriminações e violências por terem características relacionais hierárquicas, ou seja, as atribuições dos papéis masculinos e femininos se complementam, convertendo diferenças em desigualdades.
Toda discriminação costuma ser justificada mediante a atribuição de qualidades e traços de temperamento diferentes a homens e mulheres, que são utilizados para delimitar seus espaços de atuação. Com frequência, esses traços são considerados como algo inato, com o qual se nasce, algo supostamente “natural”, decorrente das distinções corporais entre homens e mulheres, em especial daquelas associadas às suas diferentes capacidades reprodutivas. Em muitos cenários, a vinculação entre qualidades femininas e a capacidade de conceber filhos e dar à luz contribui para que a principal atividade atribuída às mulheres seja a maternidade, e que o espaço doméstico e familiar seja visto como seu principal local de atuação.
Quando as distribuições desiguais de poder entre homens e mulheres são vistas como resultado das diferenças, tidas como naturais, que se atribuem a uns e outras, essas desigualdades também são “naturalizadas”. O termo “gênero”, em suas versões mais difundidas, remete a um conceito elaborado por pensadoras feministas precisamente para desmontar esse duplo procedimento de naturalização mediante o qual as diferenças que se atribuem a homens e mulheres são consideradas inatas, derivadas de distinções naturais, e as desigualdades entre uns e outros são percebidas como resultado dessas diferenças. Na linguagem do dia a dia e também das ciências a palavras sexo remete a essas distinções inatas, biológicas. Por esse motivo, as autoras feministas utilizaram o termo gênero para referir-se ao caráter cultural das distinções entre homens e mulheres, entre ideias sobre feminilidade e masculinidade.” Adriana Piscitelli, antropóloga e pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas em trecho do artigo “Gênero: a história de um conceito”. [O artigo da autora foi publicado no livro Diferenças, Igualdade. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2009]
Feminicídio íntimo: quem ama não mata
No Brasil, ainda são recorrentes os casos em que o assassinato por parceiro ou ex é apresentado como um ato isolado, um momento de descontrole ou intensa emoção em que o suposto comportamento de quem foi vítima é apontado para perversamente dizer que ela – e não o homicida – foi responsável pela agressão sofrida.
“Enciumado”, “inconformado com o término”, “descontrolado” ou até “apaixonado” são os adjetivos que figuram com frequência nas manchetes da imprensa todos os dias, ‘justificando’ crimes bárbaros, como o assassinato de Maristela Ferreira Just pelo ex-marido José Ramos Lopes Neto, em 1989, ou o de Amanda Bueno, morta no jardim da própria casa pelo noivo Milton Severiano Vieira, em 2015.
Neste cenário, a tipificação penal do feminicídio foi apontada por especialistas como uma importante ferramenta para denunciar a violência sistêmica contra mulheres em relações conjugais, que muitas vezes resulta em homicídios encarados como ‘crimes passionais’ pela sociedade, pela mídia e até pelo sistema de justiça.
É preciso entender definitivamente que, quando há violência contra uma mulher nas relações conjugais, não estamos falando de um crime passional. Esta é uma expressão que temos que afastar do nosso vocabulário, porque essa morte não decorre da paixão ou de um conflito entre casais. Ela tem uma raiz estrutural e tem a ver com a desigualdade de gênero.” Wânia Pasinato, socióloga, pesquisadora e coordenadora de acesso à Justiça da ONU Mulheres no Brasil.
Seis pontos importantes da Lei Maria da Penha para evitar o feminicídio íntimo
Diante do legado da Lei Maria da Penha, o feminicídio em contexto de violência doméstica e familiar foi o que ganhou mais destaque no debate que culminou na Lei do Feminicídio no Brasil.
Para compreender este tipo de feminicídio – conhecido como feminicídio íntimo – é preciso retomar os parâmetros estabelecidos pela Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340) desde 2006: violência doméstica e familiar contra a mulher é qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, no âmbito da unidade doméstica, da família ou em qualquer relação íntima de afeto, independentemente de orientação sexual [saiba mais].
O legado e a ampla efetivação da Lei Maria da Penha são fundamentais para o enfrentamento do feminicídio, entre outros fatores, porque:
1) A Lei Maria da Penha define cinco formas de violência doméstica e familiar e não pressupõe que só há violência quando a agressão deixa marcas físicas evidentes. Reconhecer a violência psicológica nas relações, não subestimar o risco por trás de uma ameaça ou de uma aparente ‘lesão corporal leve’ podem prevenir violências mais graves, incluindo o feminicídio íntimo.
O que no Código Penal é uma lesão leve pode ser o resultado de tortura sistemática ou mesmo de uma tentativa de feminicídio por enforcamento.”
Teresa Cristina Rodrigues dos Santos, juíza do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e titular da 2ª Vara Criminal da Comarca de Santo André/SP.
2) Na maioria dos casos, diferentes formas de violência acontecem de modo combinado. É preciso compreender que a violência física é só mais um traço de um contexto muito mais global de violência, que inclui também humilhações, críticas e exposição pública da intimidade (violência moral), ameaças, intimidações, cerceamento da liberdade de ir e vir, controle dos passos da mulher (violência psicológica), forçar a ter relações sexuais ou restringir a autodeterminação da mulher quando se trata de decidir quando engravidar ou levar adiante ou não uma gravidez (violência sexual). É fundamental também entender que, na violência doméstica, a tendência é que os episódios de agressões se repitam e fiquem mais graves.
3) É importante compreender que não existem padrões e perfis de vítima ou agressor: a violência doméstica contra mulheres cometida pelo parceiro, atual ou ex, é a mais comum, mas não é a única. A violência doméstica e familiar pode acontecer também entre indivíduos com ou sem vínculo de parentesco, mas que mantém relações de convivência.
4) O uso de álcool, drogas ou o ciúme não são causas e não servem como justificativa para violências. São apenas fatores que podem contribuir para a eclosão do episódio de violência, mas que, muitas vezes, são usados como desculpa, promovendo a impunidade e não a responsabilização pela violência.
5) A culpa não é dá vítima: ninguém deve ser responsabilizado pela violência que sofreu.
6) A Lei Maria da Penha prevê medidas protetivas de urgência para a mulher em situação de violência, como o afastamento ou até a prisão preventiva do agressor [saiba mais].
No Brasil, segundo o Código Penal, além do contexto de violência doméstica e familiar, há feminicídio também quando o crime revela o ‘menosprezo ou discriminação à condição de mulher’. Entretanto, enquanto o feminicídio íntimo conta com o legado de um marco legal como a Lei Maria da Penha (considerada umas das três mais completas e avançadas do mundo pela ONU), outros contextos de feminicídio são menos reconhecidos pela sociedade e até por atores do Sistema de Justiça.
Episódios que envolvem violência sexual seguida de assassinato – tentado ou consumado, ou ainda em que há a tortura e mutilação – revelam a desumanização e até mesmo o ódio em relação à condição feminina. Os estupros coletivos e assassinatos de quatro adolescentes em Castelo do Piauí, crime que chocou o país em 2015, são um triste exemplo amplamente conhecido de feminicídio não íntimo.
O segundo inciso [da Lei do Feminicídio] fala em menosprezo, em discriminação, incluindo então a violência que acontece entre pessoas que não se conhecem e, portanto, em que não se configura a relação íntima de afeto prevista na Lei Maria da Penha. Diante dessa hipótese, temos que estar muito atentos à forma como a pessoa é morta – esta forma pode revelar a discriminação ou o ódio ao feminino. Por exemplo, quando há mutilações dos órgãos genitais ou partes do corpo associadas ao feminino, quando há violência sexual – todos esses elementos são indicativos desse menosprezo.” Ela Wiecko, vice-procuradora-geral da República.
É importante destacar que uma condição não exclui a outra – ou seja, um mesmo feminicídio pode ser enquadrado legalmente como uma violência doméstica e familiar, objetivamente, e conter evidências de menosprezo à condição de mulher (mutilação de órgãos associados ao feminino ou violência sexual, por exemplo).
De um modo geral, não existe uma regra universal que abarque todas as situações de menosprezo à condição feminina. De acordo com o Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM), nos países da região as mortes violentas de mulheres por razões de gênero ocorrem tanto no âmbito privado como no público, em diversas circunstâncias e cenários, que podem variar, inclusive, dentro de um mesmo país.
Com isso, especialistas destacam a importância de se adotar a perspectiva de gênero para avaliar cada caso individualmente – ou seja, buscar elementos que ajudem a compreender se o comportamento violento do(a) agressor(a) e a situação de vulnerabilidade da vítima estão ou não relacionados a fatores discriminatórios [Conheça alguns exemplos práticos: Como e por que morrem as mulheres?].
Não há um gabarito rápido, há todo um conjunto de informações que os profissionais têm que estar preparados para identificar e, então, formular se aquilo foi menosprezo e discriminação com relação à vítima pelo seu gênero. São fatores como, em uma violência física, observar não só a quantidade de golpes e o tipo de armamento, mas a localização dos golpes no corpo da vítima; observar se existem marcas de violências anteriores; se no local onde a violência aconteceu há sinais de uma violência simbólica, entre outros elementos que vão compondo o preconceito, o menosprezo e a discriminação com relação a gênero.” Wânia Pasinato, socióloga, pesquisadora e coordenadora de acesso à Justiça da ONU Mulheres no Brasil.
Também é preciso atentar que nem todos os homicídios cujas vítimas são mulheres podem ter sido motivados por razões de gênero – ou seja, nem todo homicídio de uma mulher é necessariamente um feminicídio. Por isso, é um dever do Estado, sobretudo dos sistemas de segurança e justiça, adotar ações para analisar se as motivações de gênero concorreram para o feminicídio sempre que uma mulher é assassinada [Saiba mais: responsabilidades do Estado].
Diretrizes para identificar razões de gênero nas mortes de mulheres
Visando contribuir para que se identifique quando a morte de uma mulher é um feminicídio, o Escritório da ONU Mulheres no Brasil em parceria com a Secretaria de Políticas para as Mulheres promoveram um processo de adaptação à realidade nacional do protocolo latino-americano para investigação dos assassinatos de mulheres por razões de gênero.
Este processo culminou na formulação das Diretrizes Nacionais para Investigar, Processar e Julgar com Perspectiva de Gênero as Mortes Violentas de Mulheres- Feminicídios, documento que busca contribuir para o aprimoramento da investigação policial, do processo judicial e julgamento das mortes violentas de mulheres.
Para além dos atores que lidam com a aplicação da lei, o documento pode auxiliar a uma melhor compreensão do problema de um modo geral. As Diretrizes reúnem elementos que podem servir como ferramentas para evidenciar as razões de gênero a partir de uma análise das circunstâncias do crime, das características do agressor, das características da vítima e do histórico de violência.
As diretrizes apontam também com grande ênfase os deveres do poder público e os direitos das vítimas, destacando que o feminicídio é um crime evitável para o qual o Estado tem a responsabilidade de formular medidas de responsabilização, proteção, reparação e prevenção.
As autoridades estatais têm obrigação de coletar os elementos básicos de prova e realizar uma investigação imparcial, séria e efetiva por todos os meios disponíveis. Nesse sentido, a perspectiva de gênero pode garantir uma resposta adequada do Estado, com duas finalidades: dar respostas a um caso particular e, ao mesmo tempo, prevenir a perpetuação do feminicídio.” Nadine Gasman, representante da ONU Mulheres Brasil.
As Diretrizes reúnem algumas das classificações atualmente empregadas para tratar dos feminicídios na América Latina. São categorias de análise que, aplicadas à realidade social, ajudam a compreender a diversidade de contextos em que essas mortes ocorrem e como se entrecruzam com a violação de outros direitos humanos que contribuem para potencializar as situações de vulnerabilidade e risco a que as mulheres se encontram expostas.