O Brasil é um país grande, com muita diversidade e muita desigualdade regional também. Conforme a região, a mulher está totalmente isolada, em locais em que não existem serviços públicos com a porta aberta para suas demandas, nem há coletivos de mulheres que possam escutá-las.”
Maria Amélia de Almeida Telles, bacharel em Direito e co-fundadora da União de Mulheres de São Paulo e do programa de Promotoras Legais Populares.
Uma diversidade de mulheres vive em diferentes realidades no extenso território nacional. Além de as relações de gênero variarem segundo as normas e costumes locais, as mulheres podem estar mais ou menos expostas ao feminicídio devido a fatores como, por exemplo, a maior ou menor presença do Estado ou o modo como o poder público se relaciona com aquela população – se está presente por meio de serviços de acolhimento e promoção dos direitos das mulheres ou de forma não apenas dessensibilizada e desequipada, mas inclusive violenta.
O poder público precisa conhecer as mulheres do seu país e ter as instituições acessíveis e adaptadas para atendê-las nas situações em que vivem, partindo da ideia de que não existe ‘a mulher’, no geral, mas mulheres vivendo em diferentes contextos. Se, quando precisa ir a uma instituição, a mulher tem que levar os filhos junto por não ter onde deixá-los, muitas vezes ela desiste. A pobreza, por outro lado, também pode impedi-la de pegar um ônibus, trem ou barco para chegar a um serviço, porque nem todas as mulheres vivem nas grandes cidades.”
Silvia Pimentel, professora doutora em Filosofia do Direito e integrante do Comitê CEDAW/ONU (Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher da ONU), comentando a mais recente recomendação do Comitê sobre o acesso das mulheres à justiça.
Nesse contexto, especialistas recomendam que as políticas nacionais ou aquelas propostas por organismos internacionais sejam sempre adaptadas à realidade local, assim como sejam pensadas e desenvolvidas ações em conjunto com as próprias mulheres que vivem e conhecem aquela realidade, respeitando seus saberes e vivências [Saiba mais sobre experiências regionais: Quais os direitos e serviços existentes e seus limites?].
Existem especificidades, que não alcançamos na perspectiva nacional de enfrentamento ao feminicídio. No Mato Grosso do Sul, por exemplo, é preciso considerar toda população indígena que existe ali e, com isso, todo o conflito que está acontecendo nesse estado, envolvendo o território indígena e a violência contra as mulheres indígenas. Em alguns estados da região Norte esta questão irá aparecer também. Já no Rio de Janeiro existe a questão do crime organizado, da violência contra as mulheres e dos feminicídios que acontecem em ambientes dominados pelo tráfico de drogas. Além disso, cada estado tem a sua especificidade com relação às mulheres, à presença ou ausência dos serviços e à forma como os serviços se organizam e dialogam entre si e com a população.”
Wânia Pasinato, socióloga, pesquisadora e consultora da ONU Mulheres no Brasil.
Além de evidenciar as diferentes formas de viver, a perspectiva local tem contribuído para revelar as desigualdades regionais e o modo como estas desigualdades irão se relacionar com os papéis masculino e feminino que são construídos socialmente, ajudando a compreender porque o Brasil convive com taxas tão discrepantes de assassinatos femininos nos diferentes estados.
A partir de dados do Mapa da Violência 2015 e da série anterior do estudo divulgada em 2012, de pesquisas acadêmicas e das denúncias realizadas pelos diferentes movimentos de mulheres no país, alguns fatores já chamam atenção neste cenário em que a invisibilidade das diferentes realidades vividas pelas mulheres gera, com frequência, condições para a perpetuação de violências que resultam em feminicídios.
Também nas entrevistas realizadas para este Dossiê, as barreiras culturais e socioeconômicas para o acesso à justiça, o isolamento geográfico, a convivência com o crime organizado e as faces violentas do Estado e os modelos de desenvolvimentos baseados na intensa exploração e concentração de riqueza aparecem como fatores que precisam ser melhor compreendidos a partir da perspectiva de desigualdade de gênero para prevenção do feminicídio.
Saiba mais:
1) Barreiras culturais e isolamento geográfico
Muitas mulheres podem enfrentar barreiras culturais para acessar serviços e políticas públicas pensadas a partir da realidade dos grandes centros urbanos e que, por desconhecimento ou preconceito, podem não contar com profissionais preparados para atender as mulheres em toda a sua diversidade.
Mulheres indígenas ou imigrantes que não dominam a língua portuguesa, por exemplo, enfrentam obstáculos para relatar uma violência sofrida. Mulheres ciganas têm seu acesso a serviços dificultado por não possuírem domicílio fixo e, portanto, comprovante de residência. Mulheres trans e travestis têm dificuldades até para registrar um boletim de ocorrência nas delegacias da mulher pelo não reconhecimento do seu gênero e pela não aceitação do seu nome social feminino.
Além das questões culturais, muitas mulheres podem enfrentar dificuldades bastante concretas, como o isolamento físico. Mulheres que vivem no campo, na floresta e em comunidades ribeirinhas, por exemplo, estão mais distantes da maioria dos serviços de atendimento e enfrentamento à violência, ainda bastante concentrados nas capitais e grandes cidades.
A população feminina ribeirinha vive em localidades distantes e dispersas, isoladas, o que as faz enfrentar um cotidiano de violências e violações de direitos. Prevalecem o silêncio, o ocultamento dos hematomas e feridas, a submissão e o medo. Há mulheres que nunca fazem a denúncia, que morrem todos os dias sem que haja sequer um registro devido da sua morte.”
Maria Amélia de Almeida Telles, bacharel em Direito e co-fundadoracoordenadora da União de Mulheres de São Paulo e do programa de Promotoras Legais Populares.
Como exemplo, é importante ter em perspectiva que no Brasil existem menos de 500 delegacias de atendimento à mulher no universo de 5.565 município brasileiros [saiba mais em reportagem da Revista AzMina].
2) Viver entre a criminalidade e o Estado criminoso
Além do isolamento geográfico, as leis e serviços estatais para prevenir que a violência se perpetue até o assassinato podem estar distantes da realidade de mulheres que vivem em áreas ligadas ao crime organizado e outras condições de ilegalidades em que os feminicídios acontecem.
Muitas mulheres acabam sendo alvo do tráfico de drogas, seja por estarem diretamente envolvidas, seja por seus companheiros participarem de atividades ligadas ao tráfico. Essas situações podem indicar que a mulher é morta por sua condição de vulnerabilidade, quando as organizações criminosas acabam as vitimando para demonstrar à polícia, outros grupos ou mesmo à comunidade seu poder de mando.”
Aparecida Gonçalves , foi secretária nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Secretaria de Políticas para as Mulheres entre 2003 e 2015. É ativista do movimento de mulheres especialista em gênero e violência contra as mulheres.
Em regiões de fronteiras, por exemplo, as mulheres enfrentam problemas por viverem no contexto de nações que possuem legislações e estruturas governamentais diferentes.
Existe um verdadeiro somatório de ilicitudes que são intensificadas na área de fronteira – o que, acrescido ao distanciamento dos centros de poder, à falta de conhecimento sobre seus direitos e à pobreza, entre outros fatores, gera uma realidade ainda pior para a mulher fronteiriça vitimada pela violência. No caso de Roraima, os dois países (Brasil e Venezuela), assim como os dois municípios fronteiriços (Pacaraima e Santa Elena de Uairém), além de possuírem altos índices de violência praticada em razão do gênero, vivenciam problemas sociais bem peculiares, como o tráfico de mulheres, crianças e adolescentes, tráfico de drogas, prostituição, exploração sexual, mineração ilícita, contrabando etc. A criança, a adolescente e a mulher indígena são as vítimas mais vulneráveis da violência de gênero nessa região.”
Jeane Xaud, defensora pública de Roraima que integrou a Coordenação do Comitê Binacional de Fronteira Brasil/Venezuela de Combate à Violência contra a Mulher [Saiba mais].
Quando o Estado se faz presente nessas regiões, muitas vezes não aparece na forma de serviços para a promoção de direitos e proteção, mas com uma atuação violenta – o que pode contribuir para que os índices de violência contra as mulheres permaneçam elevados ou aumentem ainda mais.
O Estado deve, primeiramente, baixar as armas. Temos um Estado armado contra nós. Então é preciso retirar de circulação também as armas que matam negros e essas armas estão nas mãos da polícia nas comunidades, nas favelas, nas ruas onde a gente vive.”
Jurema Werneck, integrante da ONG Criola, médica e Doutora em Comunicação e Cultura. Também integrante do Grupo Assessor da Sociedade Civil Brasil da ONU Mulheres.
Na medida em que o Estado se fez presente, na medida em que o Estado se expandiu com seus recursos e seus direitos em regiões indígenas que estavam organizadas comunitariamente, ele rasgou tecidos comunitários e a violência contra as mulheres dentro dos próprios lares aumentou. Não estou falando em dispensar a ação do Estado, mas em entender que a forma como o Estado tem atuado, sem cuidado algum, sem proteção alguma para o tecido comunitário traz conseqüências para a vida das mulheres.”
Rita Segato, antropóloga, pesquisadora e professora doutora dos Programas de Pós-graduação em Bioética e em Direitos Humanos na Universidade de Brasília (UnB).
3) Modelos de desenvolvimentos com exploração e concentração
Todo esse modelo de desenvolvimento é um modelo de produção de mais riqueza para os ricos e brancos e produção de mais violência para os negros e pobres. Como isso afeta as mulheres negras? Isso as afeta a todo o tempo, precarizando cada vez mais o lugar aonde a gente vive, expulsando a gente cada vez mais para a periferia, armando cada vez mais a polícia e o tráfico contra nós.”
Jurema Werneck, integrante da ONG Criola, médica e Doutora em Comunicação e Cultura.
Além das realidades ilícitas, o impacto de fatores como disputa e expulsão de territórios – a partir da concentração de terras e riquezas – nas altas taxas de feminicídios ainda são pouco conhecidos no Brasil. Esses fatores, além da exploração extrema de mão-de-obra, como em áreas de trabalho escravo ou intensamente precarizado, que atingem boa parte das mulheres indígenas no campo e das mulheres negras nas cidades, demandam esforços para que sejam dimensionados e conhecidos de modo aprofundado no quadro das diferentes situações de violência que levam à morte das mulheres.
O crime organizado; as forças paramilitares, a repressão policial, as ações repressivas das forças de segurança privadas que guardam as grandes obras – tudo isso faz parte de um universo de conflitos com baixos níveis de formalização. É preciso entender a relação da violência estrutural da sociedade – da situação social, econômica e racial – com a violência de gênero. A violência que hoje se constata em muitos espaços domésticos já é uma consequência da pedagogia da crueldade própria dos novos tipos de cenários bélicos na rua. Não à toa, o Brasil é o quinto país no mundo com as maiores taxas de feminicídio e nos homicídios, de um modo geral, é também um dos países mais violentos do mundo – das 50 cidades com mais homicídios no mundo, 21 são brasileiras.”
Rita Segato, antropóloga, pesquisadora e professora doutora da UnB.