O Brasil convive com elevadas estatísticas de violências cotidianas praticadas contra mulheres – o que resulta em um destaque perverso no cenário mundial: é o 5º país com maior taxa de homicídios de mulheres.
O Brasil convive com elevadas estatísticas de violências cotidianas praticadas contra mulheres – o que resulta em um destaque perverso no cenário mundial: é o 5º país com maior taxa de homicídios de mulheres.
Todos os dias, um número significativo de mulheres, jovens e meninas são submetidas a alguma forma de violência no Brasil. Assédio, exploração sexual, estupro, tortura, violência psicológica, agressões por parceiros ou familiares, perseguição, feminicídio. Sob diversas formas e intensidades, a violência de gênero é recorrente e se perpetua nos espaços públicos e privados, encontrando nos assassinatos a sua expressão mais grave.
Há outras formas de violência que acompanham a violência fatal. É bastante eloquente mostrar a gravidade desse fenômeno: o feminicídio é a etapa final desse contínuo de violência.”
Fernanda Matsuda, socióloga e advogada que integrou o grupo responsável pela pesquisa A violência doméstica fatal: o problema do feminicídio íntimo no Brasil (Cejus/FGV, 2014).
O Brasil convive com elevadas estatísticas de violências cotidianas praticadas contra as mulheres – o que resulta em um destaque perverso no cenário mundial: é o 5º país com maior taxa de homicídio de mulheres.
O feminicídio não é aceitável em uma democracia, pois é a violação de um dos direitos mais fundamentais do ser humano: o direito à vida. É preciso visibilizar que há um problema muito sério no Brasil: estão matando mulheres. Ou seja, estão assassinando mulheres de modos muito cruéis, em muitos casos de formas absolutamente atrozes, e mulheres cada vez mais jovens.”
Ana Isabel Garita Vilchez, criminologista e ex-ministra da Justiça da Costa Rica.
Segundo os dados do Mapa da Violência 2015, o Brasil atingiu em 2013 uma taxa média de 4,8 homicídios a cada 100 mil mulheres – 2,4 vezes maior que a taxa média observada em um ranking de 83 nações, de 2 assassinatos a cada 100 mil. Dessa forma o Brasil passou da 7ª posição, no levantamento anterior, realizado em 2010, para o 5º lugar em 2013.
Na América Latina, os países são mais empobrecidos, completamente saqueados, são países que sofrem políticas de exploração por outros países. E são marcados por uma desigualdade de gênero muito forte. Não dá para desvincular o feminicídio do contexto latino-americano de sofrimento, de empobrecimento, de desigualdade e de lacuna de políticas públicas. A região convive com dados muito altos de homicídios de mulheres – e que podem representar só uma parte do problema, porque não agregam as mulheres desaparecidas e as mulheres cujo homicídio foi documentado como lesão corporal seguida de morte.”
Izabel Solyszko Gomes, doutora em Serviço Social e docente na Universidade Externado de Colombia. Pesquisadora sobre violência de gênero, especialmente sobre feminicídio e movimentos de mulheres no conflito armado colombiano.
A série histórica compilada no Mapa da Violência 2015 revela que mais de 106 mil brasileiras foram vítimas de assassinato entre 1980 e 2013. Somente entre 2003 e 2013 foram mais de 46 mil mulheres mortas. Além de alarmantes, o estudo mostra que os índices de vitimização vêm apresentando um lento mas contínuo aumento ano após ano.
O número de vítimas do sexo feminino cresceu de 3.937, em 2003, para 4.762 assassinatos registrados em 2013, ou seja, um aumento de 21% em uma década. Essas quase 5 mil mortes representam 13 assassinatos de mulheres por dia em 2013.
Apesar de graves e impactantes, esses dados podem ainda representar apenas uma parte da realidade, uma vez que uma parcela considerável dos crimes não chega a ser denunciada ou, quando são, nem sempre são reconhecidos e registrados pelos agentes de segurança e justiça como parte de um contexto de violência contra as mulheres. Com isso, a dimensão dessa violência letal ainda não é completamente conhecida no país.
O Mapa da Violência 2015 também revela o peso do feminicídio íntimo – praticado em contexto de violência doméstica – no quadro da violência letal praticada contra as mulheres no Brasil.
Dos 4.762 homicídios de mulheres registrados em 2013, 50,3% foram cometidos por familiares – ou seja das 13 mortes violentas de mulheres registradas por dia, sete foram feminicídios praticados por pessoas que tiveram ou tinham relações íntimas de afeto com a mulher, nos termos estabelecidos na Lei Maria da Penha. O Mapa revela ainda que prevalece o feminicídio conjugal nesse cenário: em 33,2% do total dos casos o autor do crime foi o parceiro ou ex-parceiro da vítima – o que representa quatro feminicídios por dia.
Apesar de conquistas no campo dos direitos das mulheres e do fomento às políticas de enfrentamento, ainda temos um quadro grave no Brasil, que é expressão da desigualdade de gênero, de mulheres que não podem se sentir seguras dentro de seu próprio lar. Precisamos continuar empregando esforços para a desconstrução de um imaginário que culpabiliza a mulher pela própria morte, agride sua memória e para que o Estado ofereça uma resposta satisfatória não só aos familiares da vítima, mas também à sociedade em geral no sentido de comunicar que essas mortes são inaceitáveis e reprováveis.”
Aparecida Gonçalves , foi secretária nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Secretaria de Políticas para as Mulheres entre 2003 e 2015. É ativista do movimento de mulheres especialista em gênero e violência contra as mulheres.
Outro diferencial percebido nos registros é que, ao passo que nos homicídios masculinos prepondera largamente a utilização de arma de fogo (73,2% dos casos), nos femininos é maioria (51,2%) a incidência de estrangulamento/sufocação, instrumento cortante/penetrante, objeto contundente e outros – meios que indicam não só a proximidade entre o homicida e a vítima, mas também sinaliza a crueldade peculiar de crimes associados à discriminação e ao menosprezo em relação à mulher.
O feminicídio íntimo tem uma prevalência dentro do total de morte violenta de mulheres como mostra o Mapa da Violência 2015: pouco mais da metade das mortes violentas foi situada no contexto de violência doméstica e familiar. Apesar de ser mais fácil associar o feminicídio a esse contexto, até pela notoriedade que a violência doméstica e familiar ganhou com a Lei Maria da Penha, sabemos que tais mortes não ocorrem só nesse cenário. Acontecem também em contextos de violência sexual praticada por pessoas desconhecidas, em contextos que revelam menosprezo, desvalor da vida da mulher, que fica evidente até pela forma que o crime é praticado – com crueldade, com o emprego de elementos não só pra matar, mas para causar dor e sofrimento na vítima ou mesmo destruir seu corpo.”
Aline Yamamoto, ex-secretária adjunta de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Secretaria de Políticas para as Mulheres, é pesquisadora e possui especialização em Criminologia e Execução Penal pela Universidade Autônoma de Barcelona, Espanha.
Ao mesmo tempo em que revela o peso do assassinato cometido em relações íntimas, que corresponde a mais da metade das mortes, o Mapa da Violência 2015 aponta, assim, para a necessidade de se reconhecer e visibilizar coletivamente os outros contextos em que as mulheres são assassinadas de forma violenta para, assim, aprimorar as políticas públicas de prevenção em casos não cobertos pela Lei Maria da Penha. [Saiba mais: Como e por que morrem as mulheres].
A morte decorrente da violência nas relações conjugais é a mais fácil de se compreender como um feminicídio. Precisamos entender que esta morte não decorre de paixão, de ciúmes ou conflitos entre casais, ela tem uma raiz estrutural relacionada à desigualdade de gênero. E precisamos evidenciar que as mulheres também morrem por razões de gênero em contextos diversos e que esse crime pode ser praticado por pessoas, homens ou mulheres, que as vítimas conhecem ou não, por indivíduos ou grupos que praticam essa violência pelo fato de ela ser mulher – seja motivado pelo ódio do que é associado ao feminino ou por entender que aquele mulher pode ser tratada como um objeto sexual.”
Wânia Pasinato, socióloga, pesquisadora e coordenadora de acesso à Justiça da ONU Mulheres no Brasil.
Na morte a gente se iguala, mulher negra ou mulher branca morta é igualzinha. Mas os processos são diferentes, o tamanho do desvalor que uma mulher negra experimenta nenhuma mulher branca experimenta.”
Jurema Werneck, integrante da ONG Criola, médica e Doutora em Comunicação e Cultura. Também integrante do Grupo Assessor da Sociedade Civil Brasil da ONU Mulheres.
O Mapa da Violência 2015 revela que, além da violência doméstica e familiar, o racismo é outro fator preponderante para colocar a vida das mulheres em risco no Brasil. A pesquisa mostra que o número anual de mortes violentas de mulheres negras aumentou 54% em dez anos, passando de 1.864, em 2003, para 2.875, em 2013. Chama atenção que, no mesmo período, a quantidade anual de homicídios de mulheres brancas diminuiu 9,8%, caindo de 1.747, em 2003, para 1.576, em 2013.
Os dados demostram que recaem sobre as mulheres negras o impacto mais cruel das desigualdades estruturais existentes no Brasil. Mulheres negras enfrentam violências da qual são vítimas diretas, como mostra o Mapa, e também indiretas, ante a morte de 27 mil jovens negros por ano. Não podemos ficar indiferentes a esses dados. Eles devem ser noticiados, problematizados e mobilizar ações de prevenção e eliminação da violência.”
Nadine Gasman, representante da ONU Mulheres no Brasil.
O Mapa da Violência 2015 identificou que o homicídio feminino concentra suas maiores taxas na faixa de 18 a 30 anos de idade. Nos dados compilados no estudo, observa-se uma incidência baixa até os 10 anos de idade, um crescimento notável dos 12 aos 30 anos e, em seguida, uma tendência de ligeiro declínio até a velhice. A tendência de declínio se reverte, porém, a partir dos 80 anos, quando há um crescimento visível das mortes violentas de mulheres.
Estamos falando de um fenômeno que é perversamente social e democrático, que pode atingir qualquer uma de nós, mulheres, mas que, ao mesmo tempo, tem características particulares que precisam ser compreendidas para promovermos as transformações necessárias. Por isso, além das discriminações baseadas nos papéis de gênero, é preciso compreender as intersecções entre gênero e classe social, geração, deficiências, raça, cor e etnia.
Wânia Pasinato, socióloga, pesquisadora e coordenadora de acesso à Justiça da ONU Mulheres no Brasil.
Diante dos altíssimos índices de violência de gênero, o risco de vida para mulheres é percebido tanto por quem é vítima, como pela população de um modo geral.
O balanço do Ligue 180 – Central de Atendimento à Mulher, no aniversário de dez anos de funcionamento do serviço em 2015, mostrou que o risco de que a violência acabe resultando na morte da vítima foi percebido em 31,22% dos relatos realizados à central.
A pesquisa de opinião Violência e Assassinatos de Mulheres (2013), realizada pelo Instituto Patrícia Galvão e Data Popular, revela que a população brasileira percebe que a vida da mulher de fato está em grande risco quando ela sofre violência doméstica e familiar. Segundo o levantamento, 85% dos homens e mulheres entrevistados acreditam que as mulheres que denunciam seus parceiros ou ex quando agredidas correm mais risco de serem assassinadas.
O silêncio, porém, também não é apontado como um caminho seguro: para 92%, quando as agressões contra a esposa/companheira ocorrem com frequência, podem terminar em assassinato. Ou seja, o risco de morte por violência doméstica é iminente e reconhecido, o que reforça a necessidade do Estado e a sociedade oferecerem todo o apoio para a mulher que rompe o ciclo de violência, garantindo sua segurança.
Olha o dilema que aparece na percepção da população: se denunciar, morre; mas se continuar também morre. Para nós, que temos a experiência no atendimento e acolhimento de casos de violência doméstica, o risco maior – sem dúvida – é viver com o agressor, por conta do ciclo da violência. É preciso acreditar na possibilidade de interrupção da violência e divulgar o que existe de apoio, para que a mulher encontre solidariedade na sua rede pessoal e também para que busque os equipamentos e serviços do Estado.”
Márcia Teixeira, promotora de Justiça da Bahia MPBA e Coordenadora do GEDEM- Grupo de Atuação Especial em defesa da Mulher e população LGBT.
As taxas de mortes violentas de mulheres podem variar consideravelmente ao longo do extenso território nacional. Além de diferenças no registro de dados e estatísticas, a variação da taxa pode estar atrelada a fatores que geram vulnerabilidades para as mulheres conforme as diferentes realidades em que vivem no Brasil, como noções culturais mais ou menos autorizadoras de violências discriminatórias e maior ou menor presença do Estado por meio de serviços de proteção e apoio a mulheres [Saiba mais: Vulnerabilidade ao feminicídio nas diferentes realidades brasileiras].
O Brasil é um país grande com muitas desigualdades regionais. Conforme a região, a mulher pode ficar totalmente isolada. Além disso, faltam serviços públicos, ela não encontra portas abertas para suas demandas. Muitas são assassinadas e não sabemos nem se há o registro dessas mortes ou se o atestado de óbito explicita quando há um feminicídio.”
Maria Amélia de Almeida Teles, bacharel em Direito e co-fundadora da União de Mulheres de São Paulo e do programa de Promotoras Legais Populares.
O Mapa da Violência mostra que, em 2013, Roraima e Espírito Santo registraram as piores taxas de assassinato de mulheres. O estudo aponta que a taxa absurdamente elevada de Roraima, de 15,3 homicídios por 100 mil mulheres, é mais que o triplo da média nacional, que é de 4,8 por 100 mil. Já os índices de Santa Catarina, Piauí e São Paulo giram em torno de 3 por 100 mil, isso é, menos de um quinto da taxa de Roraima.
Os dados evidenciam a necessidade de se conhecerem as realidades locais de modo mais aprofundado para formular respostas mais eficazes para cada cenário.
[passe o mouse sobre o Estado para ver a taxa de mortes por 100 mil habitantes]
Na série comparativa [veja infográfico abaixo], diversos estados apresentaram forte aumento no número de assassinatos de mulheres na década 2003-2013, como Roraima, onde as taxas mais que quadruplicaram (343,9%), ou Paraíba, onde mais que triplicaram (229,2%).
Entre 2006, ano da entrada em vigor da Lei Maria da Penha, e 2013, apenas cinco estados registraram quedas nas taxas: Rondônia, Espírito Santo, Pernambuco, São Paulo e Rio de Janeiro. [veja infográfico abaixo]
Em 2013 não foram registrados homicídios de mulheres em 4.026 municípios, isso é, em 72,3% dos 5.565 municípios existentes no País [baixe os dados de todos os municípios neste link].
Os municípios com as maiores taxas de assassinato de mulheres são os de pequeno porte e estão espalhados ao longo do território nacional. Nenhuma capital aparece no ranking das dos 100 municípios com mais de 10.000 habitantes do sexo feminino, com as maiores taxas médias de homicídio de mulheres [confira na página 23 do estudo na íntegra]
Esses dados reforçam um diagnóstico frequente entre especialistas e profissionais que atuam com o enfrentamento à violência contra as mulheres: é preciso promover a interiorização dos equipamentos, serviços e ações de prevenção à violência e proteção das mulheres brasileiras [Saiba mais: quais os direitos e serviços existentes e seus limites]