O que vulnerabiliza as mulheres?
Uma vida livre de violência é um direito de todas as mulheres. A possibilidade da violência sexual, porém, é parte da existência feminina no Brasil e em muitos países devido às desigualdades e a relações de poder desequilibradas, que são construídas socialmente e levam a diferentes níveis de tolerância à violência e à negação de direitos. Profissionais que lidam com este problema indicam que, para coibir as violências sexuais, é preciso promover a desnaturalização de todo um legado discriminatório contra as mulheres em relação a supostos papéis de gênero e padrões rígidos e desiguais de exercício da sexualidade.
Esse legado discriminatório e opressor pode atingir todas as mulheres, mas a intersecção de preconceitos nas múltiplas condições femininas vividas não só aumenta o risco, como funciona como uma séria barreira para o acesso à justiça e a meios de interromper um ciclo de violência que se perpetua. A naturalização de construções culturais que hierarquizam as diferenças é determinante para que o Estado e a sociedade zelem por algumas vidas e por outras não, determinando quais delas podem ser violadas sucessivamente, como tragédias anunciadas, com alto grau de impunidade – como acontece em muitos casos de violência sexual e em outros crimes, como os feminicídios, o genocídio da população negra, e os crimes contra a população LGBTI+.
Penso que as interseccionalidades de gênero, raça/cor, etnia e classe social são condições específicas e estruturantes que provocam as desigualdades sociais no Brasil, e quanto mais essas categorias se somam mais segregadas são as mulheres desses segmentos sociais.
Major Denice Santiago, idealizadora e ex-comandante da Ronda Maria da Penha da Polícia Militar da Bahia.
A combinação de múltiplas formas de discriminação
Meninas e mulheres negras, de minorias étnicas, com deficiência, lésbicas, bi, trans, travestis e intersexuais sofrem violências de maneiras similares a outras mulheres. Isso inclui assédio, abuso na infância, violência por parceiro íntimo, violência sexual, tráfico e exploração, entre outras. Há, no entanto, diferenças que vão atingir desproporcionalmente alguns grupos de mulheres ante a combinação de múltiplas formas de discriminação que se retroalimentam – sobretudo quando pensamos que as desigualdades de gênero acontecem na vida das pessoas de forma combinada com outras discriminações, como o racismo, a LBTIfobia e o capacitismo, que é a discriminação e a opressão que atingem as pessoas com deficiência.
Por que é preciso enfrentar o racismo, a LBTIfobia e o capacitismo para coibir a violência sexual?
Para serem realmente eficazes, as leis, políticas públicas, serviços e ações de enfrentamento à violência sexual devem considerar as desigualdades estruturais e históricas e as diferentes condições vividas pelas mulheres em um país extenso e diverso como o Brasil.
Dados e pesquisas mostram que alguns grupos de mulheres no país são mais vulnerabilizados, tanto por sofrerem violências sexuais, quanto por terem seus direitos violados pelo Estado, por ação direta ou omissão, depois que a violência já aconteceu.
Mulheres negrasMais da metade das vítimas de estupro no Brasil são negras (50,9%) (Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública, FBSP, 2019) As mulheres que se autodeclararam pretas e pardas afirmaram ter sofrido mais assédio: 40,5% e 36,7%, respectivamente, em comparação com as mulheres brancas (34,9%) (Fonte: Visível e Invisível: A vitimização de mulheres no Brasil – 2ª edição, Datafolha/FBSP, 2019). Mulheres indígenasDe acordo com a ONU, as mulheres são as principais vítimas das violências cometidas contra comunidades indígenas. Em um relatório divulgado em 2010, a organização relata que uma a cada três mulheres já foi estuprada e que o estupro é utilizado por muito tempo como forma de desmoralizar comunidades na invasão de territórios e limpeza étnica racial. Mulheres LBTsNos crimes de estupro, mulheres lésbicas são as mais atingidas entre a população LGBTI+. Em média, seis lésbicas foram estupradas por dia em 2017, em um total de 2.379 casos registrados, segundo levantamento da organização Gênero e Número a partir de dados obtidos no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde. Em 61% dos casos notificados, a vítima foi estuprada mais de uma vez; e em 61%, a agressão ocorreu na residência. Homens aparecem como autores em 96% das agressões sexuais. Mulheres com deficiênciaCerca de 10% das pessoas que relataram estupros nos serviços de saúde pública em 2016 tinham alguma deficiência. Desse total, 31,1% tinham deficiência mental e 29,6% possuíam transtorno mental; e 73,7% foram violentadas mais de uma vez. (Fonte: Atlas da Violência de 2018, FBSP, IPEA 2019) |
A seguir, a partir de entrevistas com especialistas, elencamos três pontos importantes para entender como discriminações históricas e estruturais contra mulheres negras, indígenas, lésbicas, bi, trans, travestis, intersexuais e mulheres com deficiência atuam na perpetuação da violência sexual.
1) O racismo e a ‘autorização’ da violência contra mulheres negras e indígenas
A população negra, historicamente, é a mais afetada no Brasil no que concerne aos dados de violência. Podemos visualizar essa triste realidade não só no 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, como no Atlas da Violência e em outros mecanismos de análise. Na minha avaliação, as mulheres negras estão mais vulneráveis, não só por serem maioria da população como pelo contexto histórico do racismo no Brasil e pelas condições socioeconômicas. São também as mulheres negras que, infelizmente, são as maiores vítimas de feminicídio no Brasil, as que ganham menos no contexto do trabalho, as que possuem o maior índice de desemprego; enfim, é uma triste realidade.
Major Denice Santiago, idealizadora e ex-comandante da Ronda Maria da Penha da Polícia Militar da Bahia.
É um processo histórico que vem desde a época da escravização no Brasil, quando as mulheres negras eram objetificadas e estupradas por seus senhores, inclusive como formas de dominação e tortura, de mantê-las cativas. E depois temos um processo de teoria científica que vai dizer que as mulheres negras são mais devassas por serem negras, que o fato de terem seios fartos, bunda grande, tornava-as mais propícias à devassidão. O Nina Rodrigues [antropólogo e médico conhecido por suas teorias eugenistas], por exemplo, no final do século 19, tem um trabalho que diz que as mulheres negras não são passíveis de serem estupradas porque elas já nascem com o hímen rompido. Então é todo um contexto histórico e cultural que propicia de forma cruel que as mulheres negras sejam mais estupradas e vulneráveis à violência.
Maria Sylvia de Oliveira, advogada e presidenta do Geledés – Instituto da Mulher Negra.
A violência sexual, o machismo e o racismo estão muito presentes em nossas vidas enquanto mulheres indígenas. São violências que silenciam nossas vozes e nossos corpos, muito pela naturalização e pela banalização da violência contra a mulher indígena, da exploração de nossos corpos pensados como um objeto sexual. (…) É preciso questionar essa herança de que a mulher foi “pega no laço”, no “dente de cachorro” ou “perdida no mato”, desconstruir este pensamento de que a mulher indígena é volúvel, de que seu corpo é permissível, que está à disposição. Se a mulher é esse pilar, uma referência de ligação com a mãe-terra, esse núcleo de reprodução cultural dos povos, então é preciso questionar por que ainda somos percebidas como um objeto de desejo sexual? São violências que não se dão apenas pela dimensão física – elas agridem a nossa própria identidade enquanto mulher indígena.
Cristiane Julião Pankararu, do povo indígena Pankararu, na bacia do rio São Francisco, em Pernambuco. É integrante da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME), da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e do coletivo Voz das Mulheres Indígenas.
O racismo e a violência vêm de um processo histórico de dizimação dos povos indígenas, um processo que está totalmente ligado à questão territorial. Os Guarani e Kaiowá vivem em oito reservas indígenas no Mato Grosso do Sul, uma área delimitada que não pode crescer nem de um lado, nem de outro. Porém, como a população Guarani e Kaiowá cresceu nas últimas décadas e a Reserva de Dourados foi reduzida devido a construções, como rodovias, hoje grande parte das aldeias está superlotada. E toda esta questão territorial contribuiu muito para o aumento da discriminação e do racismo contra os povos indígenas. Nós, povos indígenas, estamos o tempo todo reivindicando direitos.
Jacqueline Gonçalves Kaiowá, uma das porta-vozes da Grande Assembleia das Mulheres Kaiowá e Guarani do Cone Sul de Mato Grosso do Sul.
2) Violência contra mulheres lésbicas, bi, trans, travestis e intersexuais
Preconceito e discriminação contra a população LGBTI+ andam de mãos dadas e manifestam-se nos espaços sociais, da família e do trabalho. Muitas vezes de forma velada, mas com frequência resultam em violências graves contra pessoas por não se encaixarem nas normas sociais hegemônicas que definem as expectativas criadas socialmente para o “masculino” e o “feminino”. Essas normas impõem uma situação de vulnerabilidade às mulheres que não se enquadram em uma suposta linearidade entre sexo, gênero e desejo que está associada a essas expectativas: as mulheres trans, bissexuais, lésbicas, travestis ou quaisquer outras que não se encaixem nesses ideais de feminilidade e heterossexualidade ficam, assim, muito mais suscetíveis à violação de seus direitos sociais e humanos.
Segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), mulheres lésbicas ou identificadas desta forma são vítimas de “estupro corretivo”, ou estupro para puni-las com a intenção de “mudar” sua orientação sexual; de espancamentos coletivos devido à manifestação pública de afeto; de ataques com ácidos; e de entrega forçada a centros que se oferecem para “converter” sua orientação sexual.
Infelizmente a cultura do estupro é potencializada em se tratando de mulheres LBTs. Nós, mulheres lésbicas, somos vítimas de uma violência chamada ‘estupro corretivo’ pelo fato de o estuprador achar que vivenciamos a nossa sexualidade com outra mulher porque ainda não encontramos um falo irresistível. E, na cabeça doentia desse estuprador, ele se vê como a pessoa que vai ‘tirar a mulher da lesbianidade’, fazer com que ela deixe de ser lésbica ou bissexual.
Marinalva Santana, coordenadora do Grupo Matizes – Pela livre expressão sexual.
Para as mulheres trans e travestis que exercem a prostituição, a somatória de estigmas que autorizam violações de direitos, violências e assassinatos é ainda maior.
Quando a gente fala de pessoas LGBTQIA, estamos falando de estupro coletivo e corretivo, negação de identidade de gênero, um completo desrespeito às diversas orientações sexuais e vivências afetivas para além da heteronormatividade. Estamos falando da grande predisposição à morte por meio de suicídio, que já é reconhecido pela ONU como uma morte violenta. Então eu passo a entender a morte por meio de suicídio como um sistema de opressão e exclusão social extrema.
Neon Cunha, servidora pública, designer e mulher transgênero.
3) O capacitismo e a vulnerabilização de mulheres com deficiência
Há uma dificuldade de acreditar na palavra de qualquer mulher, independente dela ter ou não deficiência – sempre tem alguém pedindo outras provas, além do próprio relato da vítima. E quando uma mulher com deficiência intelectual afirma ter sofrido alguma violência como um abuso sexual, por exemplo, as pessoas sempre vão primeiro questionar se ela realmente tem noção da realidade. Então fica clara a intersecção do capacitismo com o machismo. Laureane Marília de Lima Costa, psicóloga, consultora em educação sexual e integrante do Coletivo Feminista Helen Keller de Mulheres com Deficiência.
Em seu manifesto, o Coletivo Feminista Helen Keller de Mulheres com Deficiência define como capacitismo o nome da opressão que recai sobre o corpo com impedimento e que compreende as pessoas com deficiência como incapazes de ser e fazer quaisquer coisas, como se um impedimento corporal – não andar, por exemplo – tornasse essa pessoa com deficiência também incapaz de desempenhar atividades não relacionadas ao andar.
Numa sociedade capacitista, a desigualdade que assola as pessoas com deficiência é atribuída exclusivamente ao impedimento corporal, desconsiderando a estrutura social opressora. O capacitismo significa para as pessoas com deficiência o mesmo que o racismo significa para a população negra, o machismo para as mulheres ou a LGBTfobia para a comunidade LGBTQI+. Manifesto do Coletivo Feminista Helen Keller de Mulheres com Deficiência.
Na nossa estrutura capacitista entende-se que uma mulher com deficiência é incapaz de estabelecer um relacionamento afetivo-sexual, que ela é incapaz de desejar e ser desejada. Quando esta é a lógica, essa mulher está muito mais vulnerável a aceitar a violência, porque ela não considera que aquela violência é fruto de uma estrutura maior de desequilíbrio de poder. Inclusive, pesquisas indicam que uma das crenças que fazem com que a mulher com deficiência permaneça no relacionamento abusivo é a de que se ela não tivesse deficiência, a violência não teria acontecido. Isso também é uma reprodução do pensamento capacitista, de crenças como a de que ‘foi sem querer’ ou que ‘pelo menos tem alguém pra ficar aqui comigo’.
Laureane Marília de Lima Costa, psicóloga, consultora em educação sexual e integrante do Coletivo Feminista Helen Keller de Mulheres com Deficiência.
Corpos que escapam à norma estão mais suscetíveis à violência e, inclusive, o tipo de deficiência pode ampliar a vulnerabilização. Mulheres com deficiência física severa, por exemplo, têm menos chances de se defender de uma agressão – ou até mesmo nenhuma, em alguns casos.
Mulheres com deficiência com alto nível de impedimento podem ficar privadas de usar o celular como um meio de buscar ajuda, de denunciar aquilo que está acontecendo. Se é uma mulher com deficiência visual, por exemplo, será mais difícil identificar quem é o agressor, porque ela não conseguirá descrever a pessoa. Se é uma mulher com comprometimento na fala, ela terá menos chances de sinalizar que a agressão está acontecendo.
Laureane Marília de Lima Costa, psicóloga, consultora em educação sexual e integrante do Coletivo Feminista Helen Keller de Mulheres com Deficiência.
Quais são os impactos das discriminações no acesso à saúde e à justiça quando uma violência já aconteceu?
O contexto local e a combinação de discriminações irão produzir, em diferentes níveis, obstáculos culturais e socioeconômicos para o acesso das mulheres à justiça e à saúde. Muitas mulheres podem enfrentar barreiras de todos os tipos para acessar serviços e políticas públicas pensadas a partir da realidade, por exemplo, dos grandes centros urbanos e de um perfil específico de mulher vítima de violência, e que não consideram e muitas vezes não possuem profissionais preparados para atender as demandas das mulheres em toda a sua diversidade.
Mulheres indígenas ou imigrantes que não dominam a língua portuguesa, por exemplo, enfrentam obstáculos para relatar uma violência sofrida. Mulheres ciganas e em situação de rua têm seu acesso a serviços dificultado por não possuírem domicílio fixo e, portanto, comprovante de residência. Mulheres trans e travestis têm dificuldades até para registrar um boletim de ocorrência nas delegacias da mulher pelo não reconhecimento do seu gênero e pela não aceitação do seu nome social feminino.
Mulheres com deficiência também não têm acesso real à maioria dos serviços de atendimento e proteção às vítimas de violência, já que não há respeito aos requisitos da acessibilidade universal e às especificidades dos tipos de deficiência, já garantidos no Decreto Federal 5296/2004.
Muitas mulheres também enfrentam dificuldades bastante concretas para obter ajuda e sair da situação de violência em razão do isolamento geográfico. Mulheres que vivem no campo, na floresta e em comunidades ribeirinhas, por exemplo, estão mais distantes dos serviços de atendimento e enfrentamento à violência. Além disso, a realidade local pode incluir a convivência com o crime organizado e com as faces violentas do Estado e os modelos de desenvolvimentos baseados na intensa exploração e concentração de riqueza – fatores que podem criar um cenário de violações sistemáticas e agravar a tolerância e a submissão à violência sexual.
1) Revitimização e racismo institucional
O racismo não só torna as mulheres negras e indígenas mais vulneráveis à violência, como também – em sua faceta institucional – faz dos serviços do Estado agentes revitimizadores. Isso significa que os serviços que deveriam acolher e proteger a vida da população, segundo princípios constitucionais e de tratados internacionais, não cumprem estes deveres ou até se tornam violadores dos direitos das próprias mulheres ou de pessoas do seu círculo social.
Mulheres negras e indígenas, historicamente, já têm dificuldade de acessar as políticas públicas, infelizmente, e o agente dificultador não é apenas o processo de discriminação, mas a vergonha de acessar os serviços e serem julgadas, o medo e as vulnerabilidades socioeconômicas. São grupos sociais que necessitam de políticas públicas específicas por conta das suas particularidades culturais e sociais.
Major Denice Santiago, idealizadora e ex-comandante da Ronda Maria da Penha da Polícia Militar da Bahia.
Existe a culpabilização das mulheres nos casos de estupro, sobretudo das mulheres negras que são desacreditadas por conta do imaginário racista de que somos mais propícias à devassidão. A gente sabe que também existe esse descrédito na palavra das mulheres brancas, mas com as mulheres negras isso é exacerbado pelo racismo. Por exemplo, meninas que frequentam bailes funk ou as mulheres que moram na periferia ouvem: “se você estava de shortinho no baile funk você estava pedindo pra ser estuprada”. Existe também a dificuldade de denunciar pelo fato de que muitas dessas mulheres – a depender do que acontece no espaço em que ela mora ou frequenta – não podem chamar a polícia.
Maria Sylvia de Oliveira, advogada e presidenta do Geledés – Instituto da Mulher Negra.
Por aqui são poucas as delegacias de mulheres, e as que existem não estão preparadas para atender mulheres indígenas. Para qualquer coisa que nos aconteça, a orientação é que procuremos a Funai, como se o órgão fosse aquele guarda-chuva que vai resolver tudo. E, nas delegacias comuns, somos vistas com olhar de sarcasmo, com sorrisos irônicos, com frases como: “ah, então você foi violentada? Sei…”. Sempre vão colocar a culpa na mulher, dizer que ela “facilitou” porque “não soube se comportar”, ou porque “não sabe usar uma roupa que cubra o corpo todo”, porque “não sabe se expressar”, porque “permitiu ser tocada”, porque “não disse não”. Enfim, a nossa dignidade sai ainda mais ferida das delegacias, é uma outra violência. E isso faz com que muitas mulheres indígenas sofram caladas, sem serem atendidas. E se a violência gerou um filho, também não se pode abortar, primeiro porque vem essa orientação de que é contra os nossos princípios, os princípios naturais – se você procura um serviço de saúde, muitas vezes essa será a orientação. Então a mulher não irá procurar esse serviço que silencia sua voz, que é uma mordaça, ainda que seja um direito dela.
Cristiane Julião Pankararu, do povo indígena Pankararu, na bacia do rio São Francisco, em Pernambuco. É integrante da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME), da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e do coletivo Voz das Mulheres Indígenas.
2) O despreparo para lidar com corpos não normativos
Há dados que comprovam que mulheres LBTs têm mais dificuldades de acesso aos serviços quando são vítimas de violência. Muitas vezes, ao procurar órgãos para denunciar essa discriminação, elas são revitimizadas, porque, além da violência de gênero, a gente sofre a violência por conta da nossa orientação sexual. E o mesmo acontece com as trans e travestis que, no segmento LGBT, são as mais discriminadas.
Marinalva Santana, coodenadora do Grupo Matizes – Pela livre expressão sexual.
Existem relatos de mulheres transexuais e travestis que sofrem violência por parte de seus clientes e que, quando chegam à delegacia, sofrem outra violência. Então por que ela procuraria uma delegacia para denunciar a violência se esse local não é um espaço para ela? E ela também não vai procurar um hospital para realizar um tratamento.
Neon Cunha, servidora pública, designer e mulher transgênero.
Conseguir perceber que está passando por uma situação de violência é difícil para qualquer mulher e, no caso das mulheres com deficiência, há uma série de outras barreiras que vão dificultar ainda mais a possibilidade da denúncia. Por exemplo, se essa mulher é cadeirante, ela vai enfrentar uma grande barreira que é conseguir chegar até uma delegacia, porque não temos transporte acessível suficiente – os ônibus acessíveis, muitas vezes, estão quebrados; e, no caso das mulheres com deficiência visual, as cidades não são sinalizadas para que elas consigam circular com autonomia. E se elas conseguem vencer essa primeira barreira que é a da acessibilidade urbana, quando elas chegam à delegacia, existem outras como a ausência de profissionais que saibam se comunicar em língua de sinais, considerando mulheres surdas usuárias de libras, ou de formulários em braile ou fonte ampliada, por exemplo. E, no meu ponto de vista, uma outra situação ainda mais complexa, que aumenta a nossa vulnerabilidade, é a ausência de uma política pública de cuidado, porque, muitas vezes, a pessoa que agride é também a pessoa que faz a mediação das atividades diárias, é uma pessoa que mantém também relações de cuidado com a mulher com deficiência, considerando as mulheres com alto nível de impedimento corporal, e o cuidado ainda está muito no âmbito familiar. Então denunciar uma violência implicaria também perder o cuidado.
Laureane Marília de Lima Costa, psicóloga, consultora em educação sexual e integrante do Coletivo Feminista Helen Keller de Mulheres com Deficiência.
Quero saber mais sobre o problema e formas de enfrentá-lo
Como em outras formas de violência, para enfrentar as violências sexuais é preciso legislações e políticas públicas adequadas e investimentos em serviços e profissionais que sejam capazes de materializar direitos para diferentes mulheres em diferentes condições de vida. Compreender e desnaturalizar estigmas sexuais em relação às mulheres e como se combinam com outras formas de discriminação são essenciais nesse sentido. Não só para que as instituições de saúde, segurança e justiça estejam melhor preparadas para acolher uma mulher que sofre uma violência sexual, como para que a própria população questione padrões normativos que hierarquizam vidas e corpos.
É preciso que as políticas públicas, que leis como a Lei Maria da Penha, sejam pensadas e discutidas com a gente a partir do momento em que estão sendo construídas, e não somente depois de prontas, para avaliar a incidência dessas políticas em nossas realidades. Porque o que mais nos violenta e mata é esse pensamento excludente, colonial e machista de não nos perceber como sujeitas efetivas de direitos, como parte da sociedade que vota, que paga impostos, que está nos territórios, que contribui sim com a economia, porque estamos vendendo nossos artesanatos, nossas frutas e raízes. E o Estado, enquanto formulador de políticas públicas e enquanto serviços, como delegacias, escolas e demais espaços de efetivação de direitos, precisa perceber a nossa existência.
Cristiane Julião Pankararu, do povo indígena Pankararu, na bacia do rio São Francisco, em Pernambuco. É integrante da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME), da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e do coletivo Voz das Mulheres Indígenas.
No Brasil, existem vários grupos, instituições e profissionais engajados em promover as transformações necessárias e avançar no direito das mulheres a uma vida sem violência. Aqui reunimos algumas informações que podem tanto ajudar na compreensão do problema, como a conhecer iniciativas para seu enfrentamento:
Dossiês do Instituto Patrícia Galvão
Mais informações sobre violência de gênero e direitos podem ser acessadas nos outros Dossiês produzidos pelo Instituto Patrícia Galvão:
Dossiê Violência Contra as Mulheres – Violência e Racismo e Violência contra mulheres lésbicas, bi e trans. Acesse aqui.
Dossiê Feminicídio. Acesse aqui.
APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil
Referência nacional do movimento indígena, a articulação foi criada pelo Acampamento Terra Livre (ATL) de 2005 para tornar visível a situação dos direitos indígenas e reivindicar do Estado brasileiro o atendimento das demandas e demandas dos povos indígenas. Fazem parte da APIB as seguintes organizações indígenas regionais: Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME), Conselho do Povo Terena, Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste (ARPINSUDESTE), Articulação dos Povos Indígenas do Sul (ARPINSUL), Grande Assembleia do povo Guarani (ATY GUASU), Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e Comissão Guarani Yvyrupa. Saiba mais.
Articulação Brasileira de Lésbicas
Desde maio de 2004, atua para empoderar coletivamente lésbicas e mulheres bissexuais com base nos princípios da defesa e da promoção dos direitos humanos, da cidadania e do enfrentamento a todas as formas de discriminação, preconceito, opressão e violência contra as mulheres, em especial quando decorrem do racismo, do machismo e da lesbofobia/bifobia. Saiba mais.
Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras
Com a missão de promover a ação política articulada de ONGs de mulheres negras brasileiras na luta contra o racismo, o sexismo, a opressão de classe, a lesbofobia e outras formas de discriminação, a AMNB atua para transformar as relações de poder visando a construção de uma sociedade equânime. Saiba mais.
Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos
Desde 1995 a ABGLT promove ações com o objetivo de garantir a cidadania e os direitos humanos da população LGBTI, contribuindo para a construção de uma sociedade democrática, em que nenhuma pessoa seja submetida a quaisquer formas de discriminação, coerção e violência em razão de suas orientações sexuais e identidades de gênero. Saiba mais.
Associação Nacional de Travestis e Transexuais
Fundada em 2000, na cidade de Porto Alegre/RS, a ANTRA é uma rede nacional que articula 127 instituições que desenvolvem ações para a promoção da cidadania das populações de travestis e Transexuais em todo o Brasil. Saiba mais.
Coletivo Helen Keller de Mulheres com Deficiência
Coletivo de mulheres feministas com deficiência que pauta a intersecção entre gênero e deficiência na construção de uma agenda política. Em seu manifesto, afirma que o objetivo é aprofundar o entendimento dessa intersecção e relacioná-la com os demais movimentos feministas e de mulheres, pois compreende que a estrutura capacitista, que dificulta ou impede o acesso de mulheres com deficiência à cidadania, também é atravessada pela desigualdade de classe, misoginia, sexismo, racismo e LGBTfobia. Em maio de 2020, lançou o guia “Mulheres com Deficiência: Garantia de Direitos para Exercício da Cidadania” abordando temas como saúde, direitos sexuais e reprodutivos, educação sexual emancipatória, trabalho e autonomia financeira, violência e acesso à justiça. Saiba mais.
Geledés – Instituto da Mulher Negra
Criada em 1988, a organização política de mulheres negras tem por missão a luta contra o racismo e o sexismo, a valorização e promoção das mulheres negras. Saiba mais.
Grupo Matizes – Pela livre expressão sexual
Fundado em 2002, a organização sem fins lucrativos tem como missão principal a defesa dos direitos humanos de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros. Saiba mais.
Liga Brasileira de Lésbicas
A LBL é um movimento social de âmbito nacional, que se constitui como “espaço autônomo e não institucional de articulação política, anticapitalista, antirracista, anticapacitista, não lesbofóbica, não bifóbica, não transfóbica e não homofóbica e de articulação temática de mulheres lésbicas e bissexuais, pela garantia efetiva e cotidiana da livre orientação e expressão afetivo-sexual”. Saiba mais.
App Dandarah
Projetado pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) em parceria com a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), o aplicativo de celular mapeia áreas de risco para a comunidade LGBTI e monitora casos de agressão. Também deu suporte ao projeto a ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos). Saiba mais.
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher
Estatuto da Pessoa com Deficiência
Estatuto da Igualdade Racial
Princípios de Yogyakarta
Firmado em 2006, na Indonésia, o tratado Internacional aborda aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero. Acesse.