O papel da imprensa

Os meios de comunicação têm um papel estratégico na formação da opinião e na pressão por políticas públicas e podem contribuir para ampliar, contextualizar e aprofundar o debate sobre as violações aos direitos das mulheres. A imprensa tem a responsabilidade social de alertar, conscientizar e sensibilizar sobre a gravidade do problema da violência contra as mulheres e também de contextualizar a questão, cobrando dos órgãos responsáveis a qualidade e abrangência dos serviços prestados para assistir as vítimas.

O que a imprensa pode fazer

  • Informar sobre serviços de orientação e denúncia, em especial os que podem acionados à distância, de qualquer lugar do país, como 190, Ligue 180, Disque 100, portais e aplicativos. Essas informações podem compor quadros fixos, boxes ou infográficos de fácil reutilização sempre que uma pauta tratar da violência contra as mulheres.
  • Divulgar e avaliar os serviços de denúncia e acolhimento disponíveis, mostrando o trabalho realizado e entrevistando profissionais que atuam em delegacias da mulher e em organizações públicas e privadas que dão a primeira assistência às mulheres e meninas, os serviços de referência nos hospitais que prestam atendimento multidisciplinar às vítimas de violência sexual, as casas-abrigo que recebem as mulheres que não têm para onde fugir e os órgãos do sistema de justiça que visam proteger a mulher e responsabilizar o agressor.
  • Contextualizar o problema da violência de gênero, aprofundando a abordagem para além da ocorrência de um fato individualizado e buscando apontar causas, fatores e soluções.
  • Procurar ouvir fontes qualificadas para comentar os fatos – a partir de uma perspectiva mais ampla baseada em sua experiência como especialistas –, que podem atuar também como porta-vozes das vítimas que, no caso da violência sexual, devem ter sempre seu sigilo preservado.
  • Acompanhar os debates sobre as propostas legislativas que afetam os direitos das mulheres vítimas de violência – não apenas sob a forma de leis, mas também as políticas públicas e os serviços que devem concretizar esses direitos.
  • Mostrar que o enfrentamento da violência contra as mulheres é um compromisso assumido pelo Estado brasileiro ao assinar tratados e convenções internacionais, como a Convenção de Belém do Pará (Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher), firmada pelo Brasil em 1994 e ratificada em 1995, e a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW, 1979), promulgada pelo Decreto 89.460, de 20/03/1984.

A seguir, a partir das orientações da promotora de justiça Silvia Chakian de Toledo Santos, do Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica (Gevid) do Ministério Público do Estado de São Paulo, elencamos sete pontos importantes para que a imprensa e os meios de comunicação em geral, inclusive as redes sociais, possam contribuir para a qualificação do debate público sobre a violência sexual contra as mulheres por meio da conceituação, contextualização e conscientização sobre as principais características desse crime:

1) Compreender e distinguir as diferentes manifestações da violência sexual

“O primeiro passo é compreender de que violência está se falando, pois é comum a inserção de diversas manifestações – que até podem ser antiéticas e imorais – dentro do amplo espectro dos crimes sexuais. No estado democrático de direito uma pessoa só pode ser acusada de um crime se essa conduta estiver tipificada em nosso Código Penal. Desse modo, divulgar todo e qualquer comportamento como estupro ou como assédio sexual de forma genérica, por exemplo, pode gerar expectativas irreais de responsabilização criminal por parte da população. Por isso é fundamental diferenciar e nomear corretamente as diversas formas de violência sexual, que vão das mais sutis às mais explícitas, mas todas caracterizadas pela falta de consentimento válido da vítima, identificando os possíveis enquadramentos legais.”

 2) Tratar a violência sexual como uma grave violação dos direitos humanos das mulheres

“Ao abordar um caso de violência sexual, é importante contextualizar esse fato como uma grave violação dos direitos humanos das mulheres e informar que a perversidade desse tipo de violência, muitas vezes, vai além do momento da prática e perdura em suas consequências, sejam elas físicas ou psicológicas, que podem se manifestar desde o primeiro momento ou a longo prazo. São frequentes os casos de depressão, pânico, ansiedade ou ideação suicida, transtornos que afetam a alimentação, o sono e a sexualidade ou ocorrências de gravidez e infecções sexualmente transmissíveis, nos casos de estupro com penetração.

É preciso tratar o crime de estupro como uma das formas mais devastadoras de violência de gênero, aquela que mais ressalta as assimetrias entre homens e mulheres, e não somente no Brasil como no mundo. Quando se diz que uma mulher sofre violência sexual a cada 11 minutos em nosso país, é evidente que estamos falando, portanto, de um fenômeno sociocultural que, assim como o feminicídio, tem suas raízes históricas fundadas nas desigualdades entre homens e mulheres e que sempre contou com a omissão e, por que não dizer, com a tolerância do Estado, da justiça e da própria sociedade.”

 3) A violência sexual afeta toda a sociedade e é tarefa de todos e todas enfrentá-la

“A violência sexual não é uma questão que diga respeito apenas às mulheres que foram vítimas ou que estão sob risco. Muito pelo contrário, a violência sexual exige que cada um e cada uma assuma uma posição diante do problema: como cúmplice, por meio da omissão ou da tolerância, ou contribuindo para seu enfrentamento por meio do repúdio, da conscientização e do acolhimento das vítimas. Não se trata de um tema que deve preocupar apenas aos gestores na implementação de políticas públicas voltadas à prevenção da violência sexual e minimização das suas consequências, mas é também responsabilidade de todas e todos: das empresas e empregadores, por exemplo, que precisam promover políticas de combate ao assédio sexual no trabalho; das universidades, que devem ser espaços de conscientização e prevenção e também de responsabilização, pois não podem se omitir frente a episódios de violência sexual por parte de alunos, professores ou funcionários; e também da imprensa, que deve informar, alertar e denunciar.

Por outro lado, a imprensa pode acompanhar e divulgar boas práticas, as ações e políticas que têm se mostrado positivas no enfrentamento desse problema. Uma boa resposta por parte da justiça, por exemplo, tem finalidade pedagógica, ajudando a prevenir a violência ao demonstrar que aquele caso não ficou impune; mostrar que existem canais de denúncia e serviços públicos especializados, para além das delegacias, pode estimular as vítimas a buscar ajuda.”

 4) Acabar com o estigma da mulher que sofre violência sexual

“Perde-se uma grande oportunidade de informar e educar quando a cobertura da imprensa desloca-se para o sensacionalismo, desrespeitando a mulher na sua condição de pessoa humana e expondo sua imagem de forma desnecessária. Isso contribui para aumentar o estigma sobre a vítima, que faz com que ela sinta vergonha e medo e muitas vezes opte por não buscar ajuda e permaneça sozinha e em silêncio diante do que viveu. Dessa forma, a mídia tem um papel importantíssimo de contribuir para a diminuição da subnotificação quando se trata da violência sexual. Para isso, pode ajudar a eliminar o estigma que recai sobre a mulher que sofre uma violência sexual. Historicamente, a mulher sempre tem sido responsabilizada pela violência da qual é vítima. No caso da violência sexual, persiste ainda hoje a falsa noção de que a mulher pode ter contribuído para essa violência em razão de um comportamento ‘sedutor’ ou ‘inadequado’. Paradoxalmente, é essa vítima a mais desacreditada, a que tem a sua palavra mais colocada em cheque, a mais confrontada em sua narrativa. Por isso é importante que se contraponha a esses preconceitos a ideia de que a culpa nunca é da vítima, sua palavra merece credibilidade e que nada justifica uma violência; em especial, é preciso enfatizar sempre que, para que não haja violência sexual, é preciso antes de tudo o consentimento válido da vítima.”

5) Combater a divisão entre mulheres que merecem e as que não merecem respeito e proteção da justiça

“Ainda hoje, infelizmente, o senso comum divide as mulheres em dois grupos: as que ‘merecem’ respeito e proteção por parte da justiça e as outras que, por não obedecerem a um padrão de comportamento – de ‘bela, recatada e do lar’ – não são merecedoras desse respeito e proteção e seriam, portanto, quase que ‘estupráveis’, o que é absurdo e inaceitável. Nesse contexto, a mídia tem papel fundamental ao se colocar de forma atenta para rejeitar qualquer tipo de culpabilização e revitimização, em especial para não cair na armadilha de deslocar o foco da investigação de um crime de violência sexual para o comportamento da vítima – que ‘saiu bêbada da balada’, ‘marcou encontro pelo Tinder’ e outros exemplos de manchetes revitimizadoras, que ao culpar a vítima justificam a violência praticada pelo agressor, que às vezes aparece como a vítima da sedução, aquele que apenas não conseguiu se controlar diante do comportamento ‘inadequado’ da vítima. Por isso é preciso lembrar sempre que a culpa nunca é da vítima.

Daí a importância de contextualizar um determinado caso de estupro ou assédio, mostrando que não se trata ‘só’ de um caso isolado. Assim, é preciso informar sobre a real magnitude da violência sexual, tanto no Brasil como no mundo, divulgando números atualizados e mostrando que a violência sexual não distingue raça, classe social ou nível cultural, atingindo mulheres de todos os tipos e idades e de todos os lugares, mesmo que de forma diferenciada, pois sabemos que, por conta das raízes estruturais do racismo e das várias discriminações e preconceitos, as mulheres negras, periféricas, indígenas, lésbicas e trans são ainda mais vulneráveis a todo tipo de violência, inclusive a sexual.”

 6) Não abordar o abusador sob o prisma da monstruosidade

“Evitar caminhos equivocados para atrair a atenção do público, que acabam tratando o abusador ou estuprador sob o prisma da patologia, da monstruosidade, do ‘maníaco sexual’, porque em geral esses são casos isolados. A ênfase sobre a anormalidade faz com que muitas vítimas, especialmente as vítimas de estupro conjugal ou praticado por colegas, amigos ou ‘ficantes’, tenham dificuldade para denunciar ou até mesmo para compreender que sofreram uma grave violência.”

 7) Aprofundar o debate sobre as raízes da violência de gênero

“A mídia deve aprofundar o debate sobre as raízes da violência de gênero e da cultura que naturaliza, banaliza e tolera a violência sexual praticada contra as mulheres, promovendo a reflexão sobre os papéis de gênero construídos socialmente, abordando o desequilíbrio de poder entre mulheres e homens e tratando de questões fundamentais, como a educação de meninas e meninos para um comportamento respeitoso, em relações saudáveis em que prevaleça o caminho do diálogo e não do conflito, para que se alcancem transformações efetivas rumo a uma sociedade não violenta.”

 

Monitoramento de imprensa e análise de tendências da cobertura jornalística sobre feminicídio e violência sexual contra mulheres

Realizado pelo Instituto Patrícia Galvão, o projeto de monitoramento e análise da cobertura sobre feminicídios e crimes sexuais praticados contra mulheres teve como objetivo contribuir para ampliar, contextualizar e aprofundar o debate público sobre duas das formas mais graves e extremas de violência de gênero. Apoiado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR) à época, o estudo permitiu fazer um retrato dos elementos fundamentais da abordagem jornalística sobre essas duas pautas, a partir das informações disponibilizadas por jornais e sites noticiosos.

A base de dados foi composta por matérias jornalísticas sobre assassinatos e violência sexual contra mulheres maiores de 14 anos, cisgêneras (que se reconhecem no gênero a elas atribuído socialmente), transgêneras e travestis (cujas identidades de gênero são distintas daquela que socialmente foi atribuída à pessoa ao nascer). Foram coletadas notícias publicadas no período de seis meses (01/10/2015 a 31/03/2016), em 71 veículos representativos das cinco regiões do país.

A cobertura sobre violência sexual analisada revelou-se majoritariamente factual, individualizada e com abordagem policial, sendo que parcela importante das notícias traz elementos que levam à culpabilização e superexposição da vítima [Acesse aqui]

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