Quais são as principais manifestações da violência de gênero online?
Com a internet cada vez mais presente em nosso cotidiano, a violência de gênero online passou a ser um problema na vida de muitas mulheres, que enfrentam diferentes tipos de violações. Somente em 2018, no Brasil, a SaferNet – organização voltada à defesa dos direitos humanos na internet –, recebeu 16.717 denúncias de crimes virtuais contra a mulher, um aumento de 1.640% em relação a 2017. No Helpline – canal voltado para auxiliar vítimas de crimes virtuais–, as mulheres foram maioria nos atendimentos por exposição de imagens íntimas (66%) e cyberbullying e ofensas (68%).
Todo tipo de violência que uma mulher pode sofrer no contexto offline pode aparecer no contexto da internet. A grande dificuldade é que as violências são combinadas, pois a violência online nunca acontece sozinha. E o que de fato percebemos é que há uma característica muito forte de gênero, todas essas manifestações incidem muito mais sobre mulheres. Por isso dizemos que é uma violência de gênero online.
Natália Neris, coordenadora da área de Desigualdades e Identidades do InternetLab – Centro de Pesquisa em Direito e Tecnologia.
É nesse cenário que ocorrem condutas como a disseminação não consentida de imagens e vídeos íntimos, a sextorsão (ameaça de divulgar conteúdos íntimos), o stalking (perseguição obsessiva), o cyberbullying, (para intimidar, hostilizar, linchar virtualmente a vítima), a invasão da privacidade com o chamado doxxing (quando um grupo de usuários se reúne para encontrar e divulgar dados pessoais da vítima), entre outras práticas de discriminação e violência em uma sociedade ainda marcada por desigualdades de gênero e raça.
Conheça algumas manifestações da violência contra as mulheres que mobiliza meios digitais:
Disseminação não consentida de conteúdo íntimo
Geralmente acompanhada de calúnia, difamação e chantagem, entre outras violações, a disseminação não consentida de conteúdos íntimos é uma forma de violência que tem causado sofrimento e transtornos para muitas mulheres no mundo todo. No Brasil, essa forma de violência ganhou maior projeção em novembro de 2013, quando em menos de uma semana duas adolescentes cometeram suicídio após descobrirem que imagens e vídeos seus com conteúdo sexual foram divulgados.
A prática também ficou amplamente conhecida como pornografia de vingança, pois em muitos casos os autores são atuais ou ex-parceiros/as das mulheres, que inconformados/as com o rompimento da relação, decidem divulgar fotografias e vídeos de conteúdo íntimo com o intuito de constranger a mulher e causar danos à sua imagem. O uso desse termo, no entanto, tem sido questionado pelo fato de a ideia de vingança estar associada a expor publicamente um momento privado de exercício da sexualidade como um “comportamento sexual feminino inadequado”.
Às vezes me perguntam: “mas, e as fotos, a mulher pode ou não fazer?”. É claro que existem aquelas recomendações básicas, evitar expor o rosto ou marcas, como tatuagens, que possam mostrar que é o corpo dela; ou então, quando for fazer a foto, que o dispositivo fique na posse dela. Mas, vou além disso: acho que o problema não é fazer – ou não deveria ser esse. Temos o direito de andar na rua a qualquer hora, de usar a roupa que quisermos, e temos, sim, o direito de fazer fotos. Agora, divulgar sem autorização é crime e, antes de ser crime, é imoral, não é correto. Não podemos nos curvar a isso e reforçar esse machismo que nos oprime. Devemos dizer não a essa atitude criminosa de divulgação dessas fotos sem a nossa autorização.
Rose Leonel, jornalista e fundadora da ONG Marias da Internet.
Sextorsão
Quando essa violência envolve chantagem e ameaças, o crime é de sextorsão, do inglês sextorsion. Para forçar alguém a fazer algo – por vingança, para provocar humilhação ou como extorsão financeira – os perpetradores ameaçam divulgar o material caso a pessoa não cumpra o exigido – que pode ser o envio de mais imagens ou vídeos com nudes totais ou parciais, submeter-se a outras formas de violência sexual, dinheiro ou alguma outra contrapartida.
Os conteúdos íntimos são previamente obtidos com ou sem consentimento da vítima, por vezes capturados por meio de invasão de dispositivos (aproveitando-se de brechas de segurança, inserção de aplicativo espião, monitoramento remoto de webcam, infecção por malware — um tipo de software destinado a infiltrar-se em um sistema de computador alheio de forma ilícita —, entre outros).
Esses conteúdos podem ser reais ou não; há casos de montagem e manipulação de imagens e, inclusive, situações em que o agressor não possui qualquer conteúdo íntimo da vítima, mas utiliza mecanismos convincentes para que realmente se acredite na ameaça. Independentemente da veracidade do conteúdo, divulgá-lo sem o consentimento das pessoas envolvidas é crime e é importante destacar que, nessa situação, o comportamento da mulher nunca deve estar em primeiro plano: ela não pode ser julgada e repreendida por exercer sua sexualidade. Quem divulga o conteúdo e também aqueles que repassam a mensagem adiante estão cometendo uma violência criminosa e essa atitude não pode ser tolerada.
O crime de exposição pornográfica não consentida não exige que exista uma motivação específica do autor de causar prejuízo à vitima, sendo que a mera disseminação não autorizada basta para a configuração do crime.
Christianne Cotrim Assad Bensoussan, promotora de justiça na Coordenadoria Estadual de Combate aos Crimes Cibernéticos (Coeciber) do Ministério Público do Estado de Minas Gerais.
Stalking: perseguição obsessiva e reiterada
O stalking é outra manifestação de violência na internet que também atinge mais as mulheres e que acontece geralmente de forma combinada a outras violências, como exposição não consentida de imagens íntimas e sextorsão. O agressor – ou stalker – que pode tanto ser uma pessoa próxima da vítima como um desconhecido, realiza uma perseguição obsessiva, intencional e reiterada, capaz de provocar na vítima temor por sua segurança e uma efetiva violação à sua intimidade e privacidade.
O stalker pode realizar ações rotineiras e aparentemente inofensivas, como telefonar ou deixar recados com frequência, ou praticar condutas intimidatórias, como perseguir ou enviar mensagens ameaçadoras.
O stalking consiste no assédio habitual e repetido, que se dá na forma de atenção indesejada, importunação ou perseguição – em meio físico ou virtual, este último denominado cyberstalking. Na internet essa atuação se dá via e-mail, aplicativos de mensagens, redes sociais etc. ou sem contato direto, por meio de fóruns ou páginas de redes sociais, usados para cometer o assédio, a usurpação de identidade para geração de mensagens de ódio, de anúncios falsos contendo imagens, dados e contatos pessoais da vítima, divulgando serviços de prostituição ou disponibilidade para práticas sexuais (com informações sobre preferências ou fetiches.
Ana Lara Camargo de Castro, promotora de justiça do Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul.
Ataques coordenados e outras formas de violência online
Se por um lado a internet multiplica as possibilidades de atuação das mulheres na defesa de seus direitos, por outro também se transformou em um espaço de produção e disseminação de discursos de ódio misóginos, por meio de conteúdos de insulto e humilhação que provocam intimidação e constrangimento. Isso acontece, sobretudo, se estamos falando de manifestações de violência direcionadas a mulheres que fogem dos padrões normativos em uma sociedade estruturada pelo racismo, pelo machismo, pela LBT+fobia, por preconceitos de classe e outras formas de opressão.
A violência no contexto online pode se manifestar de múltiplas formas e ela incide de uma forma mais forte se for uma mulher gorda, lésbica ou negra, enfim, se ela foge de um padrão de normatividade. Ou seja, há uma multiplicidade de formas de ataque e uma maior intensidade dependendo do perfil da mulher.
Natália Neris, coordenadora da área de Desigualdades e Identidades do InternetLab – Centro de Pesquisa em Direito e Tecnologia.
É importante reafirmar que ainda que exista o direito constitucional de liberdade de expressão, não é permitido ofender, injuriar ou difamar outra pessoa em rede social. Essas práticas, inclusive, podem configurar diferentes crimes segundo a legislação brasileira (veja mais nesta página em “Que leis e informações podem me ajudar?”).
E como um dos principais desafios das mulheres é justamente identificar e nomear as diferentes formas de violência de gênero na rede, o infográfico a seguir, elaborado com informações organizadas pela Coding Rights e pela InternetLab, pode ajudar a entender quais são os métodos empregados e como as ações agem de forma combinada em cada tipo de violência online.
Numa situação de violência de gênero online, quem eu posso procurar?
Para não ficar sozinha nesse momento em que já está tão fragilizada pela violência, o primeiro passo é buscar o apoio de pessoas de sua confiança, a quem você possa contar o que está acontecendo e compartilhar seus sentimentos sobre a situação. Além de contar com o apoio de amigas/os e familiares, você pode buscar ajuda nas redes de psicólogas, assistentes sociais e advogadas que oferecem suporte às vítimas de violência de gênero. É comum sentir vergonha e medo diante de algumas situações de violência; assim, se você tiver dificuldades de falar com conhecidos que possam lhe dar apoio, busque profissionais capacitados que irão ouvir você e fornecer orientações sobre como lidar com o problema.
Se você sentir que é complicado pedir acolhimento ou apoio jurídico, tente ao menos conversar com alguém de confiança que possa oferecer suporte, pensar em soluções junto com você. Se você se sente perseguida, ou se algum grupo está te ameaçando, procure uma pessoa que possa, por exemplo, fazer uma denúncia ou preencher um formulário online para remover um conteúdo. Isso pode ser muito importante porque, se a gente consegue se comunicar com uma ou duas pessoas, elas já podem ser nossa rede de apoio.
Fernanda Monteiro, programadora e ativista hacker
Sempre que possível, guarde provas
Quando enfrentam uma situação de violência online, muitas vítimas, no momento de desespero, tendem a deletar seu perfil nas redes sociais e a apagar as mensagens ameaçadoras e ofensivas, as fotos, vídeos e demais conteúdos recebidos, como uma espécie de defesa psicológica e até mesmo porque continuar exposta a esse tipo de conteúdo é muito doloroso.
No entanto, as especialistas ouvidas pelo Dossiê Violência Sexual ressaltam a importância de, sempre que possível, armazenar o máximo de informações relacionadas ao caso. A recomendação é que essas provas, como prints de telas e gravações de áudios, sejam reunidas e organizadas antes mesmo de denunciar a violência para as plataformas online e para a justiça. Se reunir essas provas for muito doloroso para a pessoa que é alvo da violência, alguém próximo da vítima ou mesmo um profissional, como um advogado, pode se encarregar de colher o material.
É fundamental a preservação das conversas trocadas e dos e-mails, registros audiovisuais e postagens em redes sociais. Para isso, as principais orientações são: os prints de tela devem conter a indicação de URLs; as contas devem ser desativadas, mas não excluídas; e devem ser providenciadas cópias de contas e conversas. Além disso, é preciso estar sempre consciente de que vivemos na era da pós-privacidade e que grande parte das informações que o agressor tem sobre a vítima é disponibilizada por ela própria, como descrições detalhadas de perfis, atualização de status, check-in etc.
Ana Lara Camargo de Castro, promotora de Justiça do Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul.
É possível também levar esses documentos para registro em uma ata notarial em um Tabelionato de Notas. O procedimento não é obrigatório, mas ajuda a atestar que o material é verídico em processos judiciais. Entretanto, as taxas do cartório costumam ser caras.
Se a vítima tem condições financeiras, o ideal é que ela vá ao cartório e faça uma ata notarial, que é um reconhecimento do Estado de que aquele documento, aquele print, é verdadeiro. Mas isso também é uma barreira de acesso à justiça, porque cada página custa mais de 300 reais; então, nem toda vítima consegue fazer. Mas o print com a URL, ou seja, com aquele endereço da página em que aconteceu a violação, já é lido como uma prova válida em casos de violência.
Natália Neris, coordenadora da área de Desigualdades e Identidades do InternetLab – Centro de Pesquisa em Direito e Tecnologia.
Para remover o conteúdo o quanto antes, denuncie nas plataformas
Depois de armazenar as provas, outro passo importante é denunciar a violação nas próprias plataformas para que o conteúdo seja removido o quanto antes. É importante esclarecer que, pelo Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), os provedores de aplicação (como sites, redes sociais, e-mails e aplicativos em geral) não são obrigados a retirar o conteúdo do ar. Isso só acontece quando uma ordem judicial determina que o conteúdo considerado ilícito ou ofensivo seja retirado. No entanto, ao receber uma notificação privada por parte da usuária, o provedor pode retirar esse conteúdo do ar se julgar que contraria suas regras e “políticas de comunidade”.
Essa notificação privada é muito importante no caso de um processo de denúncia, pois o Marco Civil da Internet determina que os provedores de aplicação têm a obrigação legal de guardar esses registros – isto é, o Protocolo de Internet (IP), além de data e hora e de outras informações que possam identificar um usuário – por um período de seis meses. Já para os provedores de conexão, esse período de guarda é de um ano.
Em razão desse curto prazo que a lei determina para obrigação de guarda por parte dos provedores de conexão e de aplicação, os crimes cibernéticos têm que ser apurados o mais rapidamente possível. As vítimas têm que tomar essa iniciativa e os serviços de segurança pública e de justiça têm que agir de forma rápida. E essas notificações – seja para guarda ou retirada de conteúdo – podem ser feitas por particulares, e para isso há canais específicos nessas grandes organizações, como o grupo Facebook, que também é proprietário do Instagram.
Juliana Cunha, psicóloga e diretora da SaferNet Brasil.
Vale ressaltar, no entanto, que o Marco Civil da Internet prevê uma exceção, que é a imagem de nudez, sexo ou pornografia. Nesse caso, o provedor de aplicação torna-se civilmente responsável quando não atende a notificação de retirada de conteúdo, mesmo que essa notificação seja feita de forma privada pela vítima, sem ordem judicial.
A retirada da imagem de nudez, sexo ou pornografia é uma exceção expressa no Marco Civil da Internet. Mas, nos outros tipos de delito, o provedor pode receber a notificação e, conforme sua política, decidir se vai ou não retirar. Ele irá se tornar responsável civilmente, ou seja, para indenizar eventuais danos, quando é dada a ordem judicial de indisponibilização de conteúdo e ele não a cumpre.
Juliana Cunha, psicóloga e diretora da SaferNet Brasil.
Em caso de disseminação não consentida de imagens íntimas, você não precisa necessariamente acionar a justiça, pois o conteúdo de nudez é proibido em qualquer plataforma. Então, se a vítima notificar a plataforma, o conteúdo deve ser retirado automaticamente. Mas, antes de a vítima fazer essa notificação, eu recomendaria que registrasse a URL em que estava esse conteúdo, pois, caso ele volte a ser publicado, por exemplo, a plataforma pode ser responsabilizada. O difícil, porém, é conseguir pensar nisso tudo quando se está passando pela violência. Em um momento de desespero, o primeiro impulso é exatamente o de apagar o conteúdo. Mas aí você não conseguirá nem provar o que de fato aconteceu.
Natália Neris, coordenadora da área de Desigualdades e Identidades do InternetLab – Centro de Pesquisa em Direito e Tecnologia.
Considere denunciar à justiça
Quando a mulher sofre uma violência pela internet, falamos em “primeiros socorros práticos”. São orientações básicas, mas muito importantes, porque por mais que possa causar desespero ver aquelas agressões na internet, é importante que a vítima preserve e deixe guardado tudo o que existe em termos de prova. Então, pedimos para que a vítima tenha calma e não alerte o agressor de que vai ser processado. Depois, munida de todas essas provas, é importante que ela faça um boletim de ocorrência contra esse agressor. E, se possível, procure um advogado especializado ou um investigador digital.
Rose Leonel, jornalista e fundadora da ONG Marias da Internet.
A denúncia de uma violência online pode ser feita em qualquer delegacia de polícia, sendo as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs) e as Delegacias de Defesa da Mulher (DDMs) as principais portas de entrada das denúncias de violência de gênero. Sabemos, no entanto, que apenas 8% dos municípios contam com esse atendimento especializado, conforme aponta o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Alguns estados também contam com Delegacias de Crimes Cibernéticos, mas nem todas estão preparadas para lidar com a violência de gênero – algumas investigam apenas crimes financeiros e fraudes (confira aqui se seu estado conta com uma dessas delegacias).
É importante ressaltar que toda delegacia de polícia, independentemente de ser especializada no atendimento à mulher, tem o dever de registrar a denúncia. É um dever assumido pelo Estado brasileiro combater as diferentes formas de violência contra as mulheres.
Por ser um momento doloroso, é muito importante que a mulher conte com o apoio de alguém de sua confiança quando for denunciar o ocorrido às autoridades policiais. Embora possa não ser um processo fácil, a denúncia pode ser um caminho para inibir a atitude dos violadores e mesmo levá-los à responsabilização.
Um motivo para que muitas mulheres recuem e não procurem a justiça é o fato de ter que, mais de uma vez, mostrar essas imagens, apresentar essas provas, essas evidências. Porque isso também é uma revitimização, pois ela terá que mostrar aquele conteúdo para o delegado, para o escrivão, para o juiz, para o advogado. Isso faz com que muitas mulheres relutem em dar esse passo, porque sabem que vão passar por mais essa exposição.
Juliana Cunha, psicóloga e diretora da SaferNet Brasil.
No Brasil, existe também o Ligue 180 – a Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência –, que recebe ligações telefônicas gratuitas e tem como objetivo orientar as mulheres sobre seus direitos e dar informações sobre outros serviços que podem apoiá-la. Os casos de denúncia recebidos pelo Ligue 180 são encaminhados ao Ministério Público estadual.
Cabe ao Ministério Público, como fiscal da lei e defensor da sociedade, agir para a correta aplicação da lei e a punição dos culpados, além da conscientização das vítimas sobre a importância de denunciar e preservar as provas virtuais. No âmbito preventivo, cabe ao MP esclarecer sobre os perigos da internet e a melhor maneira de utilizá-la para não ser vítima fácil de cibercriminosos.
Christianne Cotrim Assad Bensoussan, promotora de justiça na Coordenadoria Estadual de Combate aos Crimes Cibernéticos (Coeciber) do Ministério Público do Estado de Minas Gerais.
Para algumas mulheres, o processo de judicialização vai ser muito importante, vai fazer com que ela lide melhor com a situação. Mas, para outras, recorrer ao sistema de justiça pode ser uma revitimização. Já ouvimos muito de mulheres de regiões periféricas: “olha, a polícia não está aqui para nos proteger”. E, nesse contexto de violências e de encarceramento em massa, ir a uma delegacia para denunciar uma pessoa, que às vezes é próxima dela, pode não ser a atitude mais adequada. Penso que discutir violência de gênero online demanda que sejamos muito criativas nas respostas e que o nosso diálogo passe antes por perceber as diferenças entre as mulheres, tanto em termos de elaboração dessa violência, como das respostas que o sistema de justiça ou outros tipos de organizações podem dar.
Natália Neris, coordenadora da área de Desigualdades e Identidades do InternetLab – Centro de Pesquisa em Direito e Tecnologia.
Que leis e informações podem me ajudar?
Em 2018, a divulgação de imagens sem o consentimento da vítima tornou-se crime com a aprovação da Lei 13.718, que introduziu o art. 218-C no Código Penal para proibir a divulgação de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou de pornografia.
Na Lei 13.718, que se destina à proteção da dignidade, privacidade e intimidade, estão previstas condutas variadas de disseminação de imagens, como oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar, divulgar fotografia, vídeo ou registro audiovisual contendo cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ao crime de estupro ou indução à sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia.
Ana Lara Camargo de Castro, promotora de justiça do Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul.
A pena prevista para quem divulga imagens e vídeos sem consentimento é de prisão de um a cinco anos, isso se não houver algum agravante. Outra mudança promovida pela Lei 13.718/2018 é que a ação penal nos crimes contra a dignidade sexual passou a ser pública incondicionada. Isso significa que, quando a polícia ou o Ministério Público toma conhecimento da ocorrência de um crime de natureza sexual, a investigação e a ação penal ocorrerão independentemente da vontade da vítima.
A Lei 13.718 representa um avanço, porque antes, quando as mulheres denunciavam na justiça, esses casos eram enquadrados como “crimes contra a honra”, o que, além de não ser o tipo penal mais adequado para entender o problema, também não era uma medida que de fato garantia a reparação da vítima e a responsabilização dos autores. Muitas vezes, também, os próprios advogados ou juízes não sabiam como enquadrar o crime. A Lei Maria da Penha, por exemplo, raramente era utilizada para casos de violência de gênero online; então esses crimes ficavam em uma espécie de limbo. Agora temos como cobrar das autoridades e da justiça, para entender como estão aplicando a lei, se estão sabendo como receber esse tipo de denúncia e que tipo de providência tomar.
Juliana Cunha, psicóloga e diretora da SaferNet Brasil.
Também em 2018, o registro não autorizado de conteúdo íntimo e a realização de montagens em fotos, vídeos e áudios com a finalidade de incluir pessoa em cenas íntimas passaram a ser crime, segundo a Lei 13.772, também conhecida como “Lei Rose Leonel”, em homenagem a uma das primeiras vítimas dessa prática criminosa no Brasil. A pena prevista é de seis meses a um ano de prisão.
Existe ainda a Lei 12.737/2012, conhecida como “Lei Carolina Dieckmann”, que incluiu no Código Penal uma série de infrações praticadas no meio digital. Aprovada após fotos íntimas da atriz terem sido copiadas de seu computador pessoal e divulgadas na rede, a lei prevê reclusão de oito meses a 3 anos e 4 meses e multa para quem invadir dispositivo informático para obter, adulterar ou destruir dados sem autorização.
A Lei do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), em seu artigo 21, prevê que os provedores de aplicações de internet (empresas responsáveis por sites e aplicativos) têm a obrigação de retirar de imediato conteúdo íntimo de caráter privado após serem notificados pela usuária ou seu representante legal, sob pena de multa e de responsabilização.
O Marco Civil também obriga as empresas a, por meio de ordem judicial, fornecerem informações sobre usuários que cometem violência online. Tanto as empresas de aplicações como as provedoras de conexão (como as de telefonia móvel) são obrigadas a armazenar todos os registros de navegação e de conexão por no mínimo seis meses e um ano, respectivamente. Isso quer dizer que, se você foi vítima de violência online no Facebook ou no Instagram, por exemplo, a rede social tem a obrigação de saber quem é aquele usuário (ainda que o agressor tenha apagado o perfil), assim como fornecer as informações durante um processo judicial.
Antes da promulgação das leis 13.772/2018 (Lei Rose Leonel) e 13.718/2018, outros recursos das esferas civil e criminal já vinham sendo acionados nos casos de meninas e mulheres que passavam por situações de violência de gênero online:
- Lei de Contravenções Penais (Lei 3.688/1941): Art. 65 – perturbação da tranquilidade. “Molestar alguém ou perturbar-lhe a tranquilidade, por acinte ou por motivo reprovável”. A pena é de 15 dias a 2 meses, que pode ser convertida em multa.
- Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990) (se a vítima tem menos de 18 anos): art. 241-A – dispõe que incorrerá em pena privativa de liberdade e multa aquele que oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar por qualquer meio, inclusive por meio de sistema de informática ou telemático, fotografia, vídeo ou qualquer registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente.
- Código Penal:
- arts. 138, 139 e 140 – Caluniar, difamar ou injuriar alguém. Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa.
- art. 146 – Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda. Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa.
- art. 147 – Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar lhe mal injusto e grave. Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa.
- art. 158 – Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa. Pena – reclusão, de quatro a dez anos, e multa.
- art. 213 – Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Pena – reclusão, de seis a dez anos.
Violência de gênero online e Lei Maria da Penha
Caso a vítima esteja ou tenha estado em uma relação íntima com o agressor, também podem ser mobilizadas as medidas previstas na Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), visto que seus artigos 5º e 7º classificam a violência psicológica como um dos elementos possíveis para se pedir proteção. Nesses casos, a justiça pode aplicar medidas protetivas de urgência, para impor restrições ao agressor, como: proibir o contato com a vítima, afastá-lo do lar e suspender porte de armas, entre outras determinações para proteger a mulher.
A Lei Maria da Penha, apesar de não descrever todas as condutas que podem ser consideradas stalking, assegura maior proteção às mulheres, em seus artigos 5º, e 7º, inciso III. Em qualquer situação de violência, a vítima pode procurar tanto o Ministério Público, quanto à Polícia Civil. Em nenhuma hipótese, deve se calar.
Christianne Cotrim Assad Bensoussan, promotora de justiça na Coordenadoria Estadual de Combate aos Crimes Cibernéticos (Coeciber) do Ministério Público do Estado de Minas Gerais.
A justiça já reconheceu o estupro virtual
Com base nos crimes tipificados nos artigos 213 (estupro) e 217-A (estupro de vulnerável) do Código Penal, já foram dadas sentenças que reconheceram o “estupro virtual”. Isso porque, desde 2009, a legislação brasileira caracteriza o estupro como o ato de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. A partir desse entendimento, o estupro virtual pode ocorrer, por exemplo, quando uma pessoa constrange ou ameaça a outra, por meio da internet, a praticar masturbação ou a tirar a roupa na frente de uma webcam, por exemplo.
As imagens exigidas na chantagem costumam escalar em grau de fetiche e de humilhação, podendo incluir práticas sexuais reais das vítimas com crianças e adultos. Há decisões enquadrando algumas dessas práticas nos crimes de estupro ou de estupro de vulnerável. Todavia, dada a dificuldade de adequação precisa a esse tipo penal, o ideal seria que o Brasil tivesse leis específicas para tais condutas, tanto nos casos de sextorsão quanto naqueles que envolvem abuso de poder ou autoridade para obrigar a troca de favores (assistência, proteção, dinheiro, emprego, mercadorias, serviços) por sexo.
Ana Lara Camargo de Castro, promotora de justiça do Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul.
Projetos de lei sobre stalking (perseguição obsessiva)
Atualmente, a perseguição obsessiva, sendo ela virtual ou não, é enquadrada na Lei de Contravenções Penais, que prevê prisão simples de 15 dias a 2 meses para quem “molestar alguém ou perturbar-lhe a tranquilidade, por acinte ou por motivo reprovável”. Pelo texto, que é de 1941, a pena pode ser convertida em multa “de 200 mil réis a 2 contos de réis”. Hoje, porém, tramitam no Congresso dois projetos de lei para alterar a forma como a legislação brasileira deve enquadrar este tipo de violência de gênero online:
- Projeto de Lei 1.414/2019: propõe alterar a Lei de Contravenções Penais, ficando sujeito à prisão quem “molestar alguém, por motivo reprovável, de maneira insidiosa ou obsessiva, direta ou indiretamente, continuada ou episodicamente, com o uso de quaisquer meios, de modo a prejudicar-lhe a liberdade e a autodeterminação”. O PL também propõe elevar a pena para dois a três anos, sem possibilidade de conversão em multa.
- Projeto de Lei 1.369/2019: propõe alterar o Código Penal criminalizando a prática de “perseguir ou assediar outra pessoa de forma insistente, seja por meio físico ou eletrônico, provocando medo na vítima e perturbando sua liberdade”. A proposta prevê pena de seis meses a dois anos de detenção ou multa, que pode aumentar para até três anos de prisão caso a perseguição seja feita por mais de uma pessoa, envolva o uso de armas ou se o autor for íntimo da vítima.
Ambas as propostas já foram aprovadas no Senado e enviadas para a avaliação da Câmara dos Deputados. Se aprovadas, terão ainda que passar pela sanção presidencial.
Muito além de punir, é preciso prevenir e acolher
Embora as alterações legislativas sejam importantes para demonstrar o compromisso do poder público com a não tolerância às violências discriminatórias, vale lembrar que, para enfrentar de fato a violência de gênero — na internet e fora dela —, é preciso ir muito além da punição. São fundamentais também a prevenção, que passa pela promoção da igualdade de gênero e por coibir a naturalização de violações, assim como a elaboração de políticas públicas com foco na capacitação de profissionais e serviços para o acolhimento humanizado das mulheres em situação de violência.
É preciso investir na capacitação dos agentes da “rota crítica institucional” – assistência social, saúde, segurança pública e justiça –, não só para que compreendam os delitos em si, mas também o fenômeno sociocultural da violência de gênero na internet e não cometam uma revitimização.
Ana Lara Camargo de Castro, promotora de justiça do Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul.
O que preciso saber para apoiar alguém que é vítima de violência de gênero online?
De um modo geral, as vítimas de violência online desenvolvem o que chamamos de ‘dano secundário’: não é mais apenas o fato violento em si, mas todas as consequências daquela ocorrência, que são o medo, a vergonha e a culpabilização. Com a internet é assim, a vítima fica o tempo todo se sentindo exposta. Uma mulher que teve uma imagem compartilhada sem sua autorização sempre acha que essa imagem será publicada novamente ou que o agressor vai voltar a entrar em contato com ela com chantagens e ameaças. Então, é como se ela não conseguisse se libertar desse medo, que antecede e que sucede à violência.
Juliana Cunha, psicóloga e diretora da SaferNet Brasil.
A importância da escuta e do apoio sem julgamentos
Assim como acontece com outras formas de violência de gênero, o primeiro sentimento enfrentado pelas vítimas é o da culpa: “Por que fiz e mandei aquela foto?” ou “por que comecei a conversar com aquela pessoa?”. Esse sentimento é fruto de uma sociedade marcada pelas desigualdades de gênero, que ainda impõem e reforçam o lugar da mulher como responsável, em alguma medida, pela violência sofrida. Por isso é importante lembrar sempre que a culpa é de quem cometeu a violência e é essa pessoa que deve ser responsabilizada por isso.
O medo de serem julgadas é a primeira coisa que faz com que as mulheres vítimas de violência não busquem ajuda. É o medo de as pessoas dizerem: “mas por que você foi enviar essa foto?” ou “por que você foi confiar nesse estranho na internet?”. Porque, de um modo geral, as vítimas já se julgam e acham que os outros também vão julgar. Então, a primeira orientação para quem quer apoiar é o não julgamento, especialmente quando envolve a família, porque a vítima em geral tem muito medo de a família descobrir, de como as pessoas vão vê-la a partir daí. E o apoio, ou melhor, a empatia de você escutar sem julgamento pode ser decisiva para que essa pessoa não cometa nenhum ato que seja mais trágico, como já vimos em casos de jovens e adolescentes que cometeram suicídio após terem imagens íntimas compartilhadas sem autorização.
Juliana Cunha, psicóloga e diretora da SaferNet Brasil.
A importância do acolhimento passa por ter a sensibilidade de ouvir para saber como abordar essas questões; passa por um processo de ter diálogos sobre cultura digital e sobre a cultura de cuidados. Muitas vezes a pessoa se sente insegura só de pensar que pode estar sendo perseguida, e pode ser muito difícil para ela se abrir. Então, uma escuta de acolhimento passa por todo esse cuidado de conhecer quais ferramentas se consegue efetivamente usar, por quais plataformas conseguimos conversar. É sobre oferecer apoio emocional e criar espaços para que você possa conversar com as pessoas. E, nesses momentos, muitas vezes é extremamente necessário atuar em rede, porque pode ser que você esteja tão envolvida com a pessoa que está nessa situação que você já não sabe mais até que ponto vai conseguir ajudar.
Fernanda Monteiro, programadora e ativista hacker.
Quando a mulher pode contar com alguém ao lado dela, é importante que essa pessoa a ajude a manter a calma, o equilíbrio, a ter segurança para buscar as orientações básicas, como guardar as provas, fazer um boletim de ocorrência, procurar os profissionais adequados. Ela precisa de alguém que pegue na mão dela e fale: “nós vamos fazer isso juntas, tenha calma, a vida não acabou, a vida continua, você vai enfrentar essa situação e vai sair dessa”. É importante atuar como um suporte para essa vítima, porque ela vai precisar de muito apoio e ajuda psicológica, e isso vai ser necessário ao longo de todo esse processo.
Rose Leonel, jornalista e fundadora da ONG Marias da Internet.
Nessa hora é muito valioso ter alguém ao lado para ajudar nos primeiros passos para tomar as providências necessárias, porque às vezes a vítima está muito fragilizada e acha que tem que apagar tudo da rede social, ou sair da rede social para não ver mais aquelas agressões. E, pelo contrário, a melhor medida não é apagar e sim gravar tudo e reportar imediatamente para a plataforma. E o quanto antes se faz isso, mais rápido se consegue a indisponibilização desse material e será mais difícil que ele seja publicado novamente ou que alguém salve e faça o upload de novo. Então, para agir com muita rapidez, ter uma pessoa do lado pode facilitar.
Juliana Cunha, psicóloga e diretora da SaferNet Brasil.
Portanto, se você conhece alguém que está passando ou passou por essa situação, não julgue a mulher e nem questione o seu comportamento ou expressões da sua sexualidade. O foco deve ser sempre dar apoio, acolhimento, escutá-la e auxiliá-la a saber mais sobre seus direitos e os serviços que podem ser acionados.
O atendimento desses casos deve estar baseado na escuta racional, suporte emocional e não culpabilização da vítima. Os profissionais devem também estar dispostos a prestar apoio operacional para a documentação do crime e as providências policiais e judiciais. Além das medidas no âmbito penal, podem ser solicitadas medidas protetivas e cautelares de afastamento ou proibição de aproximação e contato por qualquer meio, além de ações de reparação por danos materiais e morais.
Ana Lara Camargo de Castro, promotora de justiça do Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul.
A violência não é menos grave por acontecer no espaço virtual
O apoio é fundamental para superação da violência sofrida e os profissionais que lidam com a violência de gênero na internet destacam que o amparo da justiça e o acolhimento da mulher são essenciais para a sua recuperação. Alertam, ainda, que as consequências não são menos graves por conta de a violência ocorrer em um espaço virtual. Ao contrário, muitas vezes o alcance e a permanência que as ferramentas online possibilitam podem intensificar o trauma das agressões sofridas.
Um aspecto importante é a questão da persistência, o modo como essa violência persiste ao longo do tempo ou o tipo de alcance que ela pode ter. Na vida offline, muitas vezes, as pessoas buscam outros recursos para se proteger da exposição à violência: ela sai do ambiente ou ela tenta, de alguma forma, evitar o contato com o agressor. Já na internet não se tem esse poder, porque você pode estar exposta o tempo inteiro, pois é um conteúdo que persiste, que é recorrente.
Juliana Cunha, psicóloga e diretora da SaferNet Brasil.
As reações à violência que acontecem nos meios digitais e na vida offline estão inter-relacionadas e podem ir da autocensura nas redes ao suicídio. Há relatos de mulheres que passam anos lidando com o medo de que o conteúdo seja novamente publicado. Às vezes, a vítima já está em outro contexto de vida, mas qualquer sinal faz com que ela pense que a imagem divulgada sem seu consentimento irá ser publicada de novo e que as pessoas do seu entorno vão saber. É uma violência que tende a durar muito, por isso o suporte psicológico especializado, de forma imediata e em longo prazo, também é indicado.
Quero saber mais sobre a violência de gênero online no Brasil e formas de enfrentá-la
Conforme aponta a cartilha “Violências contra mulher na internet: diagnóstico, soluções e desafios” (Coding Rights e InternetLab, 2017), um dos primeiros desafios para lidar com a violência online baseada no gênero – assim como as outras formas de violência contra mulheres e a comunidade LBT+ – é o reconhecimento de que determinadas práticas são manifestações de violência e que, portanto, “têm efeitos graves e requerem ações por parte de todos os atores envolvidos em pensar e manter a internet como um espaço aberto, livre, descentralizado e inovador, sejam eles, Estado, setor privado, comunidade técnica e sociedade civil”.
Como navegar na internet de forma mais segura?
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Um chamado aos homens: não sejam cúmplices; nunca compartilhem
A distribuição do conteúdo na internet acontece em efeito cascata e com grande velocidade, e o alcance da mensagem e a cumplicidade de conhecidos e desconhecidos que a passam adiante intensificam o poder de agressão. Por isso, nunca compartilhe um material que você suspeita não ser consentido, e sempre repreenda quem adota essa prática. Lembre-se de que enfrentar a violência contra as mulheres é também contribuir para mudar a tolerância de boa parte da população em relação a essas formas de violação e discriminação.
Temos feito muito pouco o exercício de cobrar dos homens que discutam entre eles. É preciso debater sobre masculinidade com os meninos, para que não seja mais engraçado receber um vídeo de um desconhecido em uma situação de violência, para que isso seja reprovado coletivamente. Se isso ainda acontece é porque alguém que recebeu no celular algum tipo de violência ou soube de algum caso naturalizou esse fato. Então, é importante lutar pela desnaturalização desse tipo de violência e isso não se consegue discutindo só entre nós, mulheres.
Natália Neris, coordenadora da área de Desigualdades e Identidades do InternetLab – Centro de Pesquisa em Direito e Tecnologia.
Transforme o tema da violência online em um tema coletivo
Debater o problema entre amigos, na escola, no trabalho e na comunidade antes que aconteça também é um meio de prevenir a violência.
Uma forma de lidar com a violência online é transformar o problema em um tema coletivo e dizer: “isso não é um problema que aconteceu só com ela”, “isso acontece com muitas mulheres”. Pode-se organizar rodas de conversas com as amigas para falar sobre o tema e entender que essa violência não aconteceu porque ela não soube se relacionar, porque ela escolheu a pessoa errada, ou porque exerceu sua sexualidade e mandou uma foto. É preciso tratar essa violência como um problema coletivo, como uma violência de gênero.
Natália Neris, coordenadora da área de Desigualdades e Identidades do InternetLab – Centro de Pesquisa em Direito e Tecnologia.
Conheça outras iniciativas
Além de oferecer suporte para quem enfrenta essas violências e dar informações sobre segurança digital, várias organizações e ativistas também têm se mobilizado para cobrar que todos os atores envolvidos — o que inclui as vítimas e os autores das violações, mas também o poder público e as grandes plataformas online em que essas violências acontecem — assumam suas responsabilidades e adotem medidas para prevenir e coibir o problema. A seguir, algumas publicações e links com mais informações:
Helpline
Desenvolvido pela SaferNet Brasil, o canal oferece orientação de forma online e gratuita sobre segurança na internet e como prevenir riscos e violações, a exemplo de intimidação, humilhações (cyberbullying), troca e divulgação de mensagens íntimas não-autorizadas (sexting ou nudes), encontro forçado ou exposição forçada (sextorsão), uso excessivo de jogos na internet e envolvimento com desafios perigosos (Acesse aqui).
Acoso.Online
Projeto independente que oferece orientações diretas sobre como lidar com as plataformas, os desafios legais, judiciais, organizacionais e de segurança relacionados a esse tipo de violência contra as mulheres e as pessoas LBT+, com foco na publicação não consentida de imagens e vídeos sexuais ou eróticos (Acesse aqui).
Conexões que Salvam
Iniciativa da ONG Think Olga em parceria com o Facebook, a plataforma traz informações sobre segurança online para quem sofre violência e também para quem quer apoiar uma internet mais acolhedora e construtiva para as mulheres (Acesse aqui).
Autodefesa
Segurança digital é o oposto de paranoia. O site apresenta ferramentas para a proteção da privacidade da sua comunicação e indica documentação e guias para autoaprendizado sobre segurança digital (Acesse aqui).
Guia “Prática de Estratégias e Táticas para a Segurança Digital Feminista”
O guia apresenta estratégias e táticas de defesa digital para feministas, voltado a mulheres negras, trans, lésbicas, ativistas/militantes de movimentos organizados de mulheres ou que atuam individualmente na rede. Cada assunto está conectado com casos reais de violência online e possui informações práticas sobre como agir para enfrentar as adversidades em cenários semelhantes (Acesse aqui).
O corpo é o código: estratégias jurídicas de enfrentamento ao revenge porn no Brasil
Publicado em formato digital e sob licença Creative Commons, o livro é fruto de uma pesquisa realizada pelo núcleo Desigualdades e Identidades, do InternetLab, entre 2015 e 2016, sobre o fenômeno da disseminação não consentida de imagens íntimas. A pesquisa traz uma análise comparada de leis, projetos de leis e decisões judiciais do Brasil e outros 26 países (Acesse aqui).
Plataforma Violência Contra as Mulheres em Dados, sobre a violência sexual
Desenvolvida pelo Instituto Patrícia Galvão, a plataforma divulga dados e informações sobre violência contra as mulheres, com foco nas violências doméstica, sexual e online, no feminicídio e na intersecção com o racismo e a LBT+fobia (Acesse aqui).
É sempre importante lembrar que as violências que se baseiam em discriminação em razão do gênero, como as diversas manifestações da violência de gênero online, são potencializadas quando se consideram as múltiplas desigualdades que se combinam no Brasil e que afetam de forma diferenciada as mulheres negras, pobres, indígenas, as crianças e as pessoas com deficiência, LBT+, imigrantes, entre outras, conforme cada contexto. Os dados mostram que esses segmentos são mais vulneráveis, tanto a se tornarem alvo da violência como também de terem seus direitos violados pelo Estado, por ação direta ou omissão. Para serem realmente eficazes, as políticas públicas e ações de enfrentamento à violência devem considerar as desigualdades estruturais e históricas e as diferentes condições vividas pelas pessoas (em breve teremos neste Dossiê uma seção que irá abordar essas múltiplas violações).