O Brasil está entre os países com maior índice de homicídios de mulheres no mundo – quadro que reforça a urgência de respostas eficazes do Estado e da sociedade para prevenir e coibir a violência de gênero no país.
O Brasil está entre os países com maior índice de homicídios de mulheres no mundo – quadro que reforça a urgência de respostas eficazes do Estado e da sociedade para prevenir e coibir a violência de gênero no país.
A conjugação das normas internacionais com leis nacionais foi essencial para tirar a violação dos direitos humanos das mulheres da invisibilidade e corrigir legislações discriminatórias.
Os avanços legislativos, entretanto, ainda não representam a garantia de uma vida livre de agressões para uma parcela significativa das mais de 100 milhões de mulheres que vivem no Brasil, uma vez que ausência de vontade política e dotação orçamentária estão no centro das dificuldades de implementação de políticas públicas. Com isso, ante a perpetuação de violências cotidianas, o país ainda ocupa a 5ª colocação entre as piores taxas de assassinatos no mundo, segundo o Mapa da Violência 2015.
Sabemos que, embora seja um grande avanço, a existência de leis protetivas por si só não soluciona o problema. As próprias mulheres precisam enxergar as diferenças com as quais são tratadas e não encarar como algo natural ganhar menos que o homem, ser responsabilizada integralmente pelos afazeres domésticos e educação dos filhos, ser controlada, humilhada, xingada e até mesmo agredida fisicamente.”
Marixa Fabiane Lopes Rodrigues, juíza de Direito do Tribunal de Justiça de Minas Gerais.
Os desafios para garantir igualdade entre homens e mulheres e uma vida livre de violências para, assim, coibir o feminicídio ainda são muitos. De acordo com o Informativo Compromisso e Atitude, entre as principais medidas para efetivar direitos é preciso que o Estado expanda os serviços e, para isso, que conheça os diversos contextos em que vivem as brasileiras, desenvolvendo mecanismos eficazes e adaptados às diferentes necessidades. Além disso, que adote meios para mensurar os resultados de suas ações e reavaliar a efetividade das políticas públicas.
É necessário ainda que o Estado informe a população sobre os direitos das mulheres e também a urgência em inserir a perspectiva de gênero e raça nos serviços públicos, para que não sejam reprodutores de discriminações e violências. Este conjunto de medidas propiciaria um apoio efetivo ante os episódios de violência que chegam ao Poder Público, oferecendo meios para que seja possível romper o ciclo de violência antes do desfecho fatal.
Os serviços públicos precisam estar melhor equipados e preparados para atender as mulheres, sendo que seus profissionais devem receber formação específica e ser valorizados, de modo a também contarem com apoio psicológico. Em vários casos de feminicídio, a vítima procurou uma delegacia antes de ser morta.
Se essas mulheres fossem de fato atendidas não teriam sido mortas. Teríamos como afastar o assassino, impedir que essa morte acontecesse. Então o Estado é responsável pela segurança das mulheres, pela proteção dos direitos das mulheres que estão assegurados em várias leis, inclusive na Lei Maria da Penha. Essa é a questão mais lamentável da realidade que estamos vivendo: é a tragédia anunciada – ou seja, a gente sabe que vai acontecer isso com a mulher e já existe um conhecimento técnico, medidas que poderiam ser aplicadas para impedir essas mortes e, ainda assim, no Brasil matam-se de 13 a 15 mulheres por dia por violências de gênero. Essas mulheres ainda poderiam estar vivas, o que é lamentável e indignante.”
Maria Amélia de Almeida Teles, bacharel em Direito e co-fundadora da União de Mulheres de São Paulo e do programa de Promotoras Legais Populares.
Neste sentido, os especialistas entrevistados para este Dossiê apontam que é preciso fortalecer ações integradas para que o poder público se faça presente e atuante – seja para prevenir que uma situação de violência denunciada se repita e seja perpetuada, no curto prazo, como também para desconstruir no longo prazo as discriminações que estão nas raízes da violência.
Algumas medidas são apontadas por profissionais que atuam no enfrentamento à violência como sendo fundamentais para evitar que os casos se perpetuem até o feminicídio:
1) Criação de serviços em todo o território nacional, com investimento financeiro adequado
O montante orçamentário destinado às políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres ainda são insuficientes em praticamente todas as esferas – federal, estadual e municipal. Com isso, os serviços criados ainda são insuficientes e estão muito concentrados nas capitais e grandes cidades. Essa lacuna no interior significa que o acesso das mulheres aos seus direitos é desigual no país e ainda não se tornou realidade para uma parcela significativa da população.
No Mato Grosso do Sul temos a primeira Casa da Mulher Brasileira em Campo Grande, onde os serviços principais estão concentrados em um só local físico, o que facilita muito o atendimento à mulher. No interior já não há esta estrutura e nem todas as cidades do Estado têm serviços especializados, como as DEAMs ou os Núcleos da Defensoria de Atendimento à Mulher, por exemplo. Então, a mulher, especialmente a mulher indígena, aqui no Mato Grosso do Sul, encontra com certeza muita dificuldade em acessar os serviços da rede de proteção.”
Graziele Carra Dias Ocáriz, defensora pública e coordenadora do Núcleo Institucional de Promoção e Defesa da Mulher no Mato Grosso do Sul.
Além disso, os serviços disponíveis estão sobrecarregados e não dispõem da quantidade de profissionais e infraestrutura adequada para lidar com a demanda.
Avançamos pouco na preparação ou na instrumentalização das instituições que lidam com o problema. Observem a qualidade das delegacias da mulher que temos, a quantidade de delegados, de varas e unidades carcerárias, de funcionários, psicólogos e assistentes sociais que lidam com a questão: é sempre diminuta, enquanto a quantidade de atendimentos realizados é enorme. Infelizmente, a expansão dos serviços com qualidade não tem sido prioridade.”
Teresa Cristina Cabral Santana Rodrigues dos Santos, juíza de Direito, titular da 2ª Vara Criminal da Comarca de Santo André/SP.
2) Serviços integrados com acolhimento de qualidade e perspectiva de gênero
Todas as nossas campanhas para as mulheres terminam com uma palavra: ‘denuncie’. A denúncia é importante, mas não é suficiente para dar segurança para essa mulher, para que ela possa construir estratégias de sobrevivência a esses atos de violência, para que perceba de fato que é uma pessoa em situação de violência que precisa de atendimento especializado. A denúncia é só uma parte do processo, que diz respeito exclusivamente à ocorrência criminal. Mas essa mulher precisa também de acolhimento, escuta, orientação e um atendimento individualizado, com assistente social, profissional do Direito – e isso a delegacia não vai dar para ela.”
Adriana Mota, sócia diretora da Veda Consultora em Projetos Sociais.
A integração dos diferentes serviços em um mesmo espaço físico, a exemplo das Casas da Mulher Brasileira [saiba mais], com formação específica dos profissionais em relação às violências contra as mulheres e desigualdades de gênero, é apontada como fundamental para superar a chamada ‘rota crítica’ e promover um acolhimento de qualidade.
Rota crítica é nome dado por especialistas ao caminho fragmentado que a mulher percorre buscando o atendimento do Estado, arcando sozinha com uma série de obstáculos, que vão do acesso ao transporte a repetir reiteradas vezes o relato da violência sofrida e ter que enfrentar com frequência a violência institucional praticada por profissionais que reproduzem discriminações contra as mulheres nos próprios serviços que deveriam acolhê-las com atenção e respeito.
Nessa rota fragmentada entre a delegacia, perícia, serviços de saúde e de assistência social, Defensoria, Ministério Público e Juizado, muitas vezes, ‘perde-se a mulher’, que por fatores como medo, insegurança e descrença, desiste de levar a denúncia adiante. Infelizmente, é muito comum que os profissionais desses serviços ofereçam obstáculos, questionem e duvidem da mulher que busca ajuda. Para superar o problema é preciso realizar um trabalho de prevenção e acolhimento que ofereça apoio para que as próprias mulheres sejam capazes de sair do ciclo de violência antes que se chegue ao desfecho fatal.
A integração e o fluxo dos serviços são fundamentais no atendimento para garantir que, uma vez rompida a barreira inicial da denúncia, a mulher seja efetivamente atendida e tenha sua integridade preservada.”
Jacqueline Pitanguy, socióloga, cientista política e Coordenadora da ONG CEPIA – Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação.
3) Produção de dados e indicadores para elaboração, implementação e monitoramento das políticas públicas
É importante conhecer a dimensão da violência contra as mulheres para poder enfrentá-la e adotar políticas coordenadas nos locais onde estão os maiores índices. Para adotar medidas mais efetivas, é preciso ter dados que relacionem, por exemplo, as interseccionalidades de raça e idade com a violência de gênero.”
Valéria Diez Scarance Fernandes, promotora de Justiça e coordenadora-geral da Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Copevid).
Outro ponto importante para fortalecer o enfrentamento às violências que resultam em feminicídios é a produção de dados para dimensionar o problema e conhecer suas características de forma acurada nas diferentes realidades em que vivem as mulheres no Brasil.
Quem são essas mulheres que estão morrendo? Por que elas estão morrendo? Temos que investigar isso de uma forma bastante séria, para poder ter ações de prevenção. A prevenção ao feminicídio passa pela efetivação da Lei Maria da Penha e por uma série de outras medidas. É preciso investigar melhor os casos de violência sexual, as mortes de mulheres trans, de mulheres negras e de mulheres lésbicas.”
Carmen Hein de Campos, advogada e pesquisadora, assessorou a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Violência contra a Mulher e coordenou a elaboração do Relatório Final.
Os dados, com a produção de séries históricas, são importantes para embasar a criação de serviços e políticas públicas e também para reavaliar periodicamente a eficácia das ações implementadas e realizar correções.
No Rio de Janeiro, temos o Dossiê Mulher [saiba mais] desde 2005, ou seja, temos uma série histórica de 10 anos sobre a violência contra as mulheres, em que podemos ver quem foram as vítimas, sua idade, cor e nível socioeconômico, da mesma maneira no caso dos agressores. Também podemos saber onde estão ocorrendo os crimes, se a violência aumentou ou diminuiu. Isso é muito importante para avançarmos na direção de ter um quadro da realidade no Brasil.”
Leila Linhares Barsted, advogada, diretora da ONG CEPIA – Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação e representante do Brasil no MESECVI – Mecanismo de Acompanhamento da Convenção de Belém do Pará da OEA.
4) Promoção de ações de prevenção à violência e desconstrução das desigualdades de gênero, envolvendo educação e mídia
Não basta fazer leis se as mentalidades não estão mudando. Não queremos só atuar depois que a violência aconteceu, mas também para que ela não aconteça. É preciso lembrar que há outras maneiras de lidar com a violência, levando o tema para os currículos escolares, fazendo campanhas, com espaço nos meios de comunicação para promover um debate cotidiano visando uma mudança de cultura. Coibir a violência contra as mulheres não é uma questão só de segurança pública, mas precisa envolver diversas áreas, como educação, transporte, iluminação na cidade etc.”
Leila Linhares Barsted, advogada, diretora da ONG CEPIA – Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação e representante do Brasil no MESECVI.
Para prevenir a perpetuação de relações violentas, especialistas apontam a importância de desnaturalizar a desigualdade de gênero e criar um entendimento coletivo sobre como os diferentes papéis e expectativas atribuídos socialmente ao masculino e feminino constroem hierarquias que podem resultar em violências graves.
Há supostos papéis estabelecidos tanto para homens quanto para mulheres: criam-se estereótipos que afetam a vida das pessoas. Mas, no caso das mulheres, esse impacto acontece em maior grau porque esses estereótipos são discriminatórios e, historicamente, têm impedido o acesso a poder econômico e político e a direitos, gerando desigualdades. Há uma série de barreiras que são criadas e, nesse contexto, algumas pessoas usam inclusive a violência física e psicológica para manter aquilo que avaliam ser o lugar da mulher.”
Ela Wiecko, subprocuradora geral da República.
Neste cenário, os sistemas de mídia e educação são destacados como essenciais para capilarizar as ações para a desnaturalização das desigualdades de gênero e para a construção de relações não violentas – pontos tidos como essenciais para reverter as altas taxas de feminicídio no Brasil.
Hoje há todo um tabu sobre falar em gênero, quase que uma histeria coletiva, mas esse debate é essencial. Falar em gênero é falar que a violência não é natureza dos homens e não é o destino da vida das mulheres. Quando falamos de mortes não evitáveis, são aquelas em que não teríamos nenhuma forma de modificar o curso das coisas, foi de fato uma fatalidade, como uma doença. Mas no caso dos feminicídios, quando falamos em mortes evitáveis é para mostrar que temos maneiras de acessar e transformar esses padrões e formas de viver que seguem subjugando as mulheres. As causas estão ao nosso alcance, mas precisamos enfrentar tabus. Primeiro enfrentar esse fanatismo tolo de que não se pode falar de gênero na escola; depois reconhecer o fato de que a casa é um lugar de perigo para as mulheres; e falar que o racismo e a desigualdade de classes que persistem na sociedade também são fatores para a violência.”
Debora Diniz, antropóloga, professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética.
Alguns organismos internacionais e pesquisas nacionais buscam acompanhar o estágio do enfrentamento às violências contra no Brasil. Conheça alguns deles:
1) Mecanismo de Acompanhamento da Implementação da Convenção de Belém do Pará
A Convenção de Belém do Pará define as obrigações dos Estados para prevenir, punir e erradicar a violência contra as mulheres, entre elas: adequar a legislação nacional à Convenção; elaborar leis sobre violência contra as mulheres; criar serviços e mecanismos capazes de possibilitar às mulheres o acesso à Justiça; qualificar os agentes do Estado sobre a questão da violência contra as mulheres para que possam cumprir bem suas funções. Também trata das ações de prevenção, que devem ser voltadas para toda a sociedade, a partir da promoção da educação em relação ao repúdio e ao enfrentamento da violência contra as mulheres; e prevê que o Estado organize informações estatísticas para dimensionar o problema e adequar as políticas públicas às realidades locais.
Para garantir a adoção de suas regras e recomendações nas diferentes realidades regionais dos países da OEA ao longo dos anos, a Convenção possui dois tipos de mecanismos de acompanhamento. Um deles é o Mecanismo de Proteção, que permite a apresentação de petições individuais ou coletivas referentes a violações para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Este dispositivo foi usado no próprio caso de Maria da Penha Maia Fernandes, que inspirou o nome popular da Lei nº 11.340/2006. E é justamente no campo legislativo que o Brasil registrou os maiores avanços nestes 20 anos de vigência da Convenção, segundo Leila Linhares Barsted, a representante brasileira no outro instrumento, o Mecanismo de Acompanhamento da Implementação da Convenção, um sistema independente baseado em consenso, criado em 2004 para examinar os progressos alcançados na implementação dos objetivos da Convenção nos países.
O Mecanismo analisa o progresso da implementação daConvenção pelos Estados partes a partir de relatórios periódicos elaborados pelos próprios países. Os relatórios são analisados pelo Comite de expertas, composto por especialistas independentes, que então fazem recomendações aos estados visando fortalecer a implementação da convenção, criando neste processo indicadores de progresso do cumprimento da convenção e informes [saiba mais].
Os próprios serviços precisam ser expandidos, pois sabemos que, considerando o tamanho do Brasil, o número de municípios com estes serviços ainda é limitado. A prevenção à violência é outro ponto fundamental – em um primeiro momento da Convenção, foi dado enfoque prioritário para as questões da segurança e da justiça. Mas não podemos atuar só depois que a violência já aconteceu; é preciso agir para que ela não aconteça e, para isso, as mentalidades precisam mudar.”
Leila Linhares Barsted, advogada, diretora da ONG CEPIA – Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação e representante do Brasil no MESECVI.
Diante desse diagnóstico, nas últimas recomendações elaboradas pelo Mesecvi aos países, e que foram reunidas em um documento que ficou conhecido como Declaração de Pachuca, há um enfoque grande na prevenção, com ênfase especial ao papel da educação e da mídia.
2) Comitê CEDAW
A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, de 1979, também chamada CEDAW (da sigla em inglês) ou Convenção das Mulheres, é o primeiro tratado internacional que dispõe amplamente sobre os direitos humanos das mulheres. São duas as frentes propostas: promover os direitos das mulheres na busca da igualdade de gênero e reprimir quaisquer discriminações contra as mulheres nos Estados-parte.
Entretanto, a simples enunciação formal dos direitos das mulheres não representa automaticamente a efetivação de seu exercício. Por isso foi criados um comitê para monitorar a implementação de medidas de erradicação da violência contra as mulheres nos países signatários.
A brasileira Silvia Pimentel é advogada e cumpriu dois mandatos (2011 e 2012) como presidente do Comitê CEDAW. Ainda integrante do Comitê, a especialista em direitos das mulheres acompanha há anos o desenvolvimento de leis não discriminatórias em diversos países. Em entrevista recente ao Informativo Compromisso e Atitude, Silvia Pimentel afirma que o Brasil conquistou um avanço legislativo enorme, mas o acesso à justiça permanece como um grande desafio [confira a entrevista na íntegra].
O Comitê CEDAW faz periodicamente recomendações gerais a todos os países, como a de número 33, que aborda exatamente o acesso à justiça. Elabora ainda recomendações dirigidas especificamente a países, como a que foi encaminhada para o Brasil em 2012 [veja aqui].
3) CPMI da violência doméstica
A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre Violência contra as Mulheres (CPMI-VCM) investigou as políticas públicas de enfrentamento a todas as formas de violência contra as mulheres nos 26 Estados brasileiros e no Distrito Federal, de março de 2012 a julho de 2013.
A metodologia de trabalho combinou a coleta de informações quantitativas e qualitativas sobre a atuação dos serviços e setores envolvidos com a implementação da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, em especial os da segurança pública, justiça e saúde. O diagnóstico da violência contra as mulheres nos Estados baseou-se ainda em dados e informações que foram solicitadas aos governos estaduais, Tribunais de Justiça, Ministérios Públicos e Defensorias Públicas. Os dados deveriam referir-se ao período de cinco anos (2007-2011) ou aos doze meses anteriores à solicitação.
O relatório final da CPMI foi apresentado em julho de 2013 e traz o diagnóstico das ações em cada Estado para a aplicação da Lei Maria da Penha, recomendações aos governos estaduais e federal, propostas de legislação e alguns casos emblemáticos de violação aos direitos das mulheres. Entre as recomendações constava a tipificação penal do feminicídio no Brasil, o que se concretizou em 2015, com a entrada em vigor da Lei 13.140.
Para facilitar o acesso ao relatório da comissão, o Portal Compromisso e Atitude pela Lei Maria da Penha elaborou o Mapa da CPMI, uma ferramenta interativa que disponibiliza de forma organizada as informações resultantes do trabalho de investigação sobre a situação da violência contra as mulheres em cada estado brasileiro [confira].
Para alterar um sistema que naturaliza e tolera a violência contra as mulheres, inclusive quando se chega ao extremo do assassinato, são necessárias políticas públicas e dotação orçamentária para sua execução, inclusive para a formação dos agentes públicos que atuarão nos serviços.
O fato de no Brasil haver previsão no Código Penal de outros crimes que afetam especialmente as mulheres – como estupro, assédio sexual e tráfico de pessoas, entre outros – não significa que estejamos cumprindo com o dever internacional de diligência e assegurando às mulheres o direito de viver uma vida sem violência.”
Aline Yamamoto, criminologista e ex-secretária adjunta de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Secretaria de Políticas para as Mulheres, em artigo para a Agência Patrícia Galvão.
A permanência de crenças discriminatórias nas instituições brasileiras faz com que, muitas vezes, o preconceito do profissional que atua nos serviços públicos seja uma séria barreira para o acesso a direitos e serviços. Diante da falta de compreensão sobre as desigualdades de gênero e raça, os profissionais que estão nos serviços do Estado podem ser reprodutores de discriminações quando, por exemplo, buscam no comportamento da mulher – e não do autor do crime – uma justificativa para o episódio de violência ou a desencorajam a fazer a denúncia e a buscar direitos.
Há violência institucional quando os profissionais dos serviços públicos criados para acolher e garantir os direitos das mulheres em situação de violência reproduzem o racismo e o sexismo nos atendimentos ou quando os autores das violências contra as mulheres são agentes dos serviços públicos no exercício de suas funções.
Legado de leis discriminatórias
Além de as construções culturais dificultarem um acolhimento de qualidade nos serviços públicos, o legado de leis discriminatórias ainda ecoa na prática dos sistemas de segurança e justiça.
Como exemplos da construção dos lugares desiguais de homens e mulheres, a legislação do Brasil Colônia dava aos maridos o direito de assassinar suas mulheres.
Esse quadro se agrava diante de um histórico de colonização e desenvolvimento econômico estruturalmente baseado em relações racializadas – o Brasil está há 127 anos fora do regime escravista, contra 388 anos sob a escravidão legal. Passou, ainda, por duas ditaduras somente no período republicano, em que a violência, inclusive contra as mulheres, foi institucionalizada [saiba mais]. Ou seja, o que na atualidade é reconhecidamente absurdo, já foi legal.
Além desse legado histórico negativo, até muito recentemente o Brasil convivia com leis discriminatórias, que negavam formalmente a equidade para as mulheres brasileiras até mesmo no caso de crimes hediondos. Um exemplo constava do Código Penal brasileiro de 1940, que previa a extinção da punibilidade a um estuprador caso ele se casasse com a vítima – o que só foi alterado em 2002. A violência sexual, até então, era considerada um crime ‘contra a honra’ e não contra a dignidade sexual.
Não é a violência que cria a cultura, mas é a cultura que define o que é violência. Ela é que vai aceitar violências em maior ou menor grau, a depender do ponto em que estejamos enquanto sociedade humana, do ponto de compreensão do que seja a prática violenta ou não.”
Luiza Bairros, doutora em Sociologia pela Universidade de Michigan e ex-ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (Seppir).
Além da violência sexual, a violência doméstica e familiar também era banalizada, ao ser abordada nos tribunais sob a Lei nº 9.099/1995, que instituiu os Juizados Especiais Criminais destinados a processar os delitos de ‘menor potencial ofensivo’. Sob esse viés, era comum que fossem estabelecidas punições alternativas para os autores de violências contra as mulheres, como a doação de cestas básicas ou o pagamento de multas.
A mulher sempre foi tratada como coisa, da qual o homem podia usar, gozar e dispor. Prova disso é que o Código Civil de 1916, retratando a sociedade machista e patriarcal da época, relegava a mulher a um segundo plano. A superioridade masculina desfilava naturalmente naquele texto legal, tanto é que a mulher, ao se casar, tornava-se um ser relativamente capaz, precisando da autorização do marido inclusive para trabalhar.”
Marixa Fabiane Lopes Rodrigues, juíza de Direito do Tribunal de Justiça de Minas Gerais.
E não apenas as violências que poderiam levar ao feminicídio eram banalizadas, mas o próprio assassinato das mulheres era ‘tolerado’ muitas vezes pelo sistema de justiça. Nestes casos, não havia o amparo de leis discriminatórias, mas a banalização da violência homicida acontecia pela aceitação de teorias e doutrinas jurídicas que levavam a sentenças judiciais baseadas em legados culturais sexistas, como a tese da ‘legítima defesa da honra’.
‘Legítima defesa da honra’ = ilegítima impunidade de assassinos
A figura da ‘legítima defesa da honra’ nunca existiu no marco legal brasileiro, pelo contrário, fere tanto leis nacionais como tratados e normas internacionais dos quais o Brasil é signatário.
Apesar de não ter amparo legal, o Brasil é apontado como um dos países da região latino-americana com o mais tradicional, largo e profundo histórico de decisões jurisprudenciais que acolheram – e muitas vezes ainda acolhem – a tese da ‘legítima defesa da honra’ para crimes de homicídio e agressões contra mulheres, sobretudo aqueles praticados por parceiros atuais ou ex.
Assim, a figura da ‘legítima defesa da honra’ é uma tese jurídica fincada sob bases culturais discriminatórias e que visa tornar impunes maridos, irmãos, pais ou ex-companheiros e namorados que matam ou agridem suas esposas, irmãs, filhas, ex-mulheres e namoradas sob a ‘justificativa’ da defesa da honra da família ou da honra conjugal.
Fonte: “Legítima Defesa da Honra – Ilegítima impunidade de assassinos: Um estudo crítico da legislação e jurisprudência da América Latina”, por Silvia Pimentel, Valéria Pandjiarjian e Juliana Belloque [leia na íntegra].
Ainda existe uma resistência muito grande no sistema de justiça criminal em incorporar o paradigma da Lei Maria da Penha. Percebemos que os estereótipos de gênero têm um peso enorme nessa construção simbólica que ocorre durante o processo judicial. A mulher é vista como adequada ou não ao papel social que lhe é atribuído. Se ela não se adequa a essa atribuição social, é vista como menos vítima e menos merecedora da atenção do sistema de justiça. Se ela cumpre seu papel, vai ser mais credora. Então, o homem se transforma no ‘monstro’ e o resultado vai ser uma pena mais alta.”
Fernanda Matsuda, advogada e socióloga; consultora jurídica do Portal Compromisso e Atitude.
Os ecos deste legado discriminatório, infelizmente, ainda são muito presentes no Brasil. A pesquisa Violência doméstica fatal: o problema do feminicídio íntimo no Brasil (Cejus/FGV, 2014), realizada recentemente em seis Estados brasileiros, evidencia que nos tribunais do júri, em que são julgados os crimes contra a vida, os operadores de justiça ainda aplicam pouco a Lei Maria da Penha e, na contramão, reproduzem estereótipos associados aos papéis de gênero atribuídos a homens e mulheres.
Vimos juízes querendo investigar quem era a mulher, se era boa mãe, dedicada, mulher direita, ou se era uma mulher que não cumpria o papel social. Vimos a mobilização dos estereótipos femininos como forma de justificar a violência. As mortes aconteciam por um histórico de violência que era ignorado no momento do julgamento, que reduzia todo o debate a apenas um ato.”
Marta Machado, pesquisadora e professora da FGV Direito SP, coordenou a pesquisa A violência doméstica fatal: o problema do feminicídio íntimo no Brasil (Cejus/FGV, 2014).
Com isso, na contramão do marco legal, abordagens descontextualizadas e marcadas por uma compreensão que reforça o lugar da mulher como responsável, em alguma medida, pela violência sofrida ainda são muito frequentes nos julgamentos de feminicídios [saiba mais].
Sou defensora pública e titular no Tribunal do Júri de Caxias (RJ), então defendo o homem agressor. Crescemos em uma cultura jurídica de que tudo vale a favor do réu – o que é diferente de garantir que o réu tenha direito a ampla defesa. Só que isso não é um dogma, porque os direitos humanos e os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário colocam limites para esta defesa. Mas, infelizmente, o grande palanque do feminicídio é o plenário do júri, onde se diz que se pode matar e que essa mulher tem que morrer porque ela fez alguma coisa. Dessa forma, estamos reforçando uma cultura de discriminação da mulher e que viola o direito mais básico, que é o direito à existência, que é o direito de viver. Não posso chegar para o júri e falar que você pode matar alguém.”
Renata Tavares, defensora pública do Estado do Rio de Janeiro e autora do artigo “Os Direitos Humanos como Limite Ético na Defesa dos Acusados de Feminicídio no Tribunal do Júri”.
É urgente discutir as questões de gênero na escola. Este é um debate muito mais urgente do que tipificar o feminicídio, porque as mulheres são mortas por ter ainda muita gente que acha que não há problema em matar essa mulher. Onde essas pessoas aprenderam isso? Está na cultura. Então, a saída para o problema passa pela prevenção via mudança cultural, via meios de comunicação, via inclusão da discussão de gênero no currículo escolar – não só no ensino fundamental e médio, mas no ensino superior.”
Maíra Cardoso Zapater, coordenadora-adjunta do Núcleo de Pesquisas do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).
A permanência da tolerância social e institucional às violências contra as mulheres revela também que ainda são necessárias transformações de valores e comportamentos para prevenir os feminicídios no Brasil.
A Lei Maria da Penha, por exemplo, só foi trabalhada no aspecto penal e todas as outras medidas de proteção, empoderamento da mulher e de prevenção foram deixadas em segundo plano. O máximo que se faz é distribuir cartilhas e escrever trabalhos, mas a mulher sujeita à violência, na maioria das vezes, não encontra respaldo no poder público, sequer para o tipo de proteção urgente de que precisa. E, de uma forma mais ampla, é preciso haver um debate substantivo nas escolas e em todos os espaços em que se aprende a ser homem e ser mulher – nos sistemas de ensino, entre os amigos, família, mídia, esse tipo de educação é muito importante.”
Renata Tavares, defensora pública do Estado do Rio de Janeiro.
Neste cenário, as especialistas entrevistadas reforçam a necessidade de ações de prevenção que questionem os estereótipos e discriminações que estão nas raízes das diversas formas de violência que ainda vitimam milhares de mulheres cotidianamente no país.
O Estado tem sido muito omisso. São pouquíssimos os recursos destinados à prevenção da violência. Acho que não há um entendimento por parte do Estado sobre como a violência, principalmente a violência doméstica, se relaciona e se interconecta com as demais violências na sociedade brasileira, sobre como a permissividade e a naturalização dessa violência desde a infância estrutura uma sociedade violenta. Ainda há a velha noção tradicional de que violência é um problema de polícia. Então há muito pouco recurso para as políticas de prevenção. Nesse sentido, a simples criminalização do feminicídio não vai dar conta da complexidade do tema. É preciso um olhar muito mais cuidadoso e muito mais atencioso para o que falhou, e não para a consequência que é a morte diante de todas essas falhas do sistema da justiça e do sistema social.”
Carmen Hein de Campos, advogada e pesquisadora, assessorou a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Violência contra a Mulher e coordenou a elaboração de seu Relatório Final.
Entre as ações para mudar este quadro, especialistas enumeram: envolver os homens na superação dessa cultura violenta; reconhecer e dar atenção para as formas institucionais de violência perpetradas pelo Estado; assegurar o protagonismo das mulheres por meio de políticas públicas de educação, autonomia econômica e financeira e equidade no trabalho doméstico e no trabalho remunerado; cobrar respostas do Poder Público e da iniciativa privada nesse sentido; e garantir o investimento na expansão com qualidade da rede de atenção e enfrentamento à violência.
Muito antes e para além da violência, a luta é pela desconstrução de formas estruturantes de desigualdade na nossa sociedade, aquelas baseadas nas relações de gêneros e raça. Enfrentar essa realidade exige um esforço diuturno que ainda permanece oculto: precisamos avançar na divisão das tarefas de cuidado, na maior participação das mulheres em espaços de decisão e poder, na garantia dos direitos sexuais e reprodutivos, na revisão do ensino e educação formal, com a inclusão de temas como discriminação de gênero e raça, na revisão das estruturas opressoras do sistema capitalista, na mudança das formas hierárquicas tão presentes nas nossas diversas relações humanas e muito, muito mais. Precisamos envidar esforços para alcançar aquelas e aqueles que historicamente têm ficado para trás na luta por direitos. Isso significa reconhecer que somos muitas mulheres, que as diversas formas de desigualdades se intercruzam e há aquelas que enfrentam maiores dificuldades e estão mais longe de ter sua dignidade humana reconhecida e respeitada.”
Aline Yamamoto, criminologista e ex-secretária adjunta de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Secretaria de Políticas para as Mulheres, em artigo.
De acordo com a ex-secretária nacional adjunta de enfrentamento à violência contra as mulheres, a advogada Aline Yamamoto, o principal avanço que o Brasil alcançou com a sanção da Lei Maria da Penha foi respaldar a institucionalidade necessária para que as políticas para as mulheres se estruturassem.
Um indicador nesse sentido é o crescimento no número de Organismos de Políticas para as Mulheres (OPMs): nos primeiros dez anos de existência da Secretaria de Políticas para as Mulheres esse quantitativo foi elevado em mais de 4.000%: em 2003 eram 13, e em 2013 chegaram a 544, nos níveis municipal, estadual e distrital. Com o aumento do número de OPMs, houve maior visibilidade ao tema e maiores possibilidades de execução da política de enfrentamento à violência contra as mulheres, como a adoção de recursos orçamentários próprios, aumento da rede de serviços especializados, dos serviços ofertados, da qualidade desses e, consequentemente, do aumento da população atendida e sabedora de seus direitos. Essa capilaridade favoreceu uma maior conscientização política para o tema, provocando a preocupação por parte de todos os entes e poderes federativos.”
Aline Yamamoto, criminologista e ex-secretária adjunta de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Secretaria de Políticas para as Mulheres, em artigo.
Apesar de insuficientes em relação às necessidades da população, os serviços criados apontaram caminhos para efetivamente coibir a violência e prevenir o feminicídio. A partir da criação dos serviços especializados, muitos profissionais que atuam com a violência contra as mulheres têm se engajado em dar respostas para os desafios que encontram no dia a dia, organizando a produção de indicadores, as parcerias com serviços de empoderamento da mulher e com a sociedade civil e também realizando trabalhos de responsabilização de homens agressores.
Vale destacar que os avanços não são lineares, já que, como são recentes e contam com um amparo institucional limitado e com pouca prioridade orçamentária, as ações e serviços ficam vulneráveis às alternâncias políticas em todas as esferas.
Neste cenário, a mídia tem um papel importante em divulgar práticas e propostas promissoras que vem sendo implementadas em todo o país, além de acompanhar sua continuidade e descontinuidade, cobrando o Poder Público quando este se omite. Para contribuir nesse sentido, este Dossiê enumera a seguir algumas experiências importantes no cenário brasileiro hoje:
As diretrizes são fruto do processo de adaptação do Modelo de Protocolo Latino-Americano de Investigação das Mortes Violentas de Mulheres por Razões de Gênero – Femicídio/Feminicídio (ONU, 2014) à realidade social, cultural, política e jurídica do Brasil, realizado com a colaboração de um Grupo de Trabalho Interinstitucional composto por dez profissionais – delegadas de polícia, peritos criminais, promotoras de justiça, defensoras públicas e juízas.
O documento evidencia que a perspectiva de gênero e o olhar atento em cada caso são essenciais para melhorar a resposta do Estado diante do feminicídio. Também reúne elementos para aprimorar as práticas das instituições públicas nas diversas etapas, desde a investigação policial, o processo judicial e o julgamento das mortes violentas de mulheres até a garantia dos direitos de vítimas sobreviventes ou indiretas.
Wânia Pasinato, a pesquisadora da ONU Mulheres que coordenou a adaptação das Diretrizes Nacionais, ressalta que, para ter maior efetividade, o documento deve ser adaptado aos diversos contextos em que vivem as brasileiras. A especialista tem participado ativamente da implementação das diretrizes, em processo piloto que está sendo realizado em cinco estados brasileiros e que tem impulsionado uma construção coletiva entre diferentes atores dos sistemas de segurança e justiça para atuar diante dos feminicídios na sua região.
Iniciado em setembro de 2015 nos estados do Maranhão, Mato Grosso do Sul, Piauí, Rio de Janeiro e Santa Catarina, o trabalho de implementação das Diretrizes está sendo coordenado pelos organismos estaduais de políticas para mulheres, em conjunto com o Grupo de Trabalho Interinstitucional local, composto por instituições das áreas de segurança pública e justiça criminal.
Todas as instituições colaboram por meio da participação de profissionais que tratam tanto de crimes contra a vida – delegacias de homicídio e setores que atuam nos tribunais do júri – quanto da aplicação da Lei Maria da Penha – como DEAMs, promotorias, defensorias e juizados de violência doméstica e familiar. Deste modo tem sido alcançada uma maior integração das instituições e um comprometimento interno para as mudanças que se fazem necessárias.”
Aparecida Gonçalves, secretária nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Secretaria de Políticas para as Mulheres entre 2003 e 2015. É ativista do movimento de mulheres especialista em gênero e violência contra as mulheres.
As Diretrizes sobre feminicídio contribuem ainda para evidenciar as razões de gênero a partir da análise, em cada caso, das circunstâncias do crime, das características do agressor e da vítima e do histórico de violência. Assim, o documento contribui para promover o reconhecimento de que, em contextos e circunstâncias particulares, as desigualdades de poder estruturantes das relações de gênero contribuem para aumentar a vulnerabilidade e o risco que resultam nas mortes de mulheres [conheça as Diretrizes].
Com as presenças da ministra Cármen Lúcia, vice-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e de todas as mulheres ministras do Executivo e parlamentares da bancada feminina do Congresso Nacional, a primeira Casa da Mulher Brasileira foi inaugurada pela presidenta Dilma Rousseff em 3 de fevereiro de 2015, em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, dando início a uma nova etapa no enfrentamento à violência contra as mulheres no país [saiba mais sobre a primeira Casa da Mulher Brasileira].
A Casa coloca em prática a recomendada integração dos serviços para garantir a união necessária de esforços para enfrentar as várias formas de violência contra as mulheres e assegurar o acesso ao atendimento integral e humanizado necessário nesse contexto [leia também].
As Casas da Mulher Brasileira são parte do Programa Mulher, Viver sem Violência, lançado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR) em março de 2013, sob a coordenação da então ministra Eleonora Menicucci.
O Programa propõe o fortalecimento e a consolidação da rede integrada de atendimento às mulheres em situação de violência, articulando as diversas áreas de assistência, proteção e defesa dos direitos da mulher.
Para atingir esses objetivos, o Programa Mulher, Viver sem Violência desenvolve seis estratégias de ação: 1. Criação das Casas da Mulher Brasileira; 2. Ampliação da Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180; 3. Criação dos Centros de Atendimento às Mulheres nas regiões de Fronteiras; 4. Organização e Humanização do Atendimento às Vítimas de Violência Sexual; 5. Unidades Móveis de Atendimento às Mulheres do Campo e da Floresta (Rodoviárias e Fluviais); 6. Campanhas Continuadas de Conscientização.
A criação de uma unidade da Casa da Mulher Brasileira nas capitais de cada estado e no DF é um dos carros-chefes do programa. Depois de Campo Grande (MS), foram inauguradas mais duas unidades, em Brasília (DF) e Curitiba (PR). As demais unidades estão em andamento, em diferentes estágios de licitação e obras.
Instituído pela Portaria nº 064-/GS/2015 o Núcleo Policial Investigativo de Feminicídio do Piauí foi criado para que, a partir de uma atuação com perspectiva de gênero e atenção às características da violência contra as mulheres, a resposta do setor de segurança pública aos assassinatos femininos seja mais adequada e eficiente.
De acordo com a portaria, o Núcleo está diretamente subordinado à Secretaria de Segurança Pública do Estado e tem competência para a “apuração da violência intitulada feminicídio, como sendo o assassinato de meninas, mulheres, travestis e mulheres transexuais baseado em relações de gênero”.
Criado antes da promulgação da Lei do Feminicídio no Brasil, o Núcleo auxiliou, por exemplo, no grave caso de Castelo do Piauí, crime de estupro coletivo associado a tentativas de feminicídio de quatro adolescentes, com o assassinato de uma delas.
Quando as pessoas dizem: ‘matou por ciúme’ ou que foi ‘legítima defesa da honra’, pode contar que a motivação é de gênero. Precisamos tirar o ciúme do debate e ir para o discurso técnico. A Lei do Feminicídio veio mostrar que se mata por ser mulher, independentemente de ela ter ou não relação com aquele homem. Que se matam mulheres, não por ciúmes, mas por motivos fúteis ou torpes, pela dominação masculina. A relação de gênero corporifica a ideia de que há dominação de um ente por outro, dominação do corpo e hegemonia masculina. Todos os corpos que desafiam aquela ideia do sexo masculino como prevalente estão vulneráveis à violência.”
Eugênia Villa, delegada e subsecretária de Segurança Pública do Piauí.
Outros estados também já adotaram medidas neste sentido. É o caso do Rio de Janeiro, onde uma portaria da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro (nº 620, de 7 de março de 2013) estabelece a rotina básica a ser observada pela autoridade policial nas ocorrências de homicídio em que a vítima seja mulher [saiba mais].
Outra portaria, da Secretaria de Defesa Social de Pernambuco (nº 3.849, de 16 de setembro de 2013), disciplina o registro das motivações de gênero nos Crimes Violentos – Letal e Intencional contra as mulheres e o registro de crimes informáticos. Esta portaria substitui a categoria ‘passional’ por ‘íntimo-afetivo’ no Catálogo de Motivações de Mortes Intencionais da SDS/PE.
Além das portarias que regulam a investigação e registro dos casos de feminicídio, iniciativas regionais têm avançado também na criação de bancos de dados sobre as violências contra as mulheres, como por exemplo o Dossiê Mulher, no Rio de Janeiro, a Rede Lilás, no Rio Grande do Sul, e as iniciativas dos Ministérios Públicos do Paraná e Bahia [saiba mais].
A Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul implementou, em 2013, a Sala Lilás, um espaço de acolhimento exclusivo para mulheres no Instituto Geral de Perícias (IGP), com o objetivo de oferecer um atendimento especializado e humanizado à mulher vítima de violência [saiba mais].
A proposta é não colocar a vítima em situações de constrangimento ou expô-la à revitimização de aguardar o atendimento ao lado do agressor. Além do acolhimento humanizado, a Sala Lilás tem a função de qualificar a coleta de provas para materialidade do crime no processo, a fim de garantir a responsabilização do agressor.
Vale destacar que uma boa parte dos episódios de violência doméstica e familiar acaba sendo classificada como crime de lesão corporal leve. Porém, quando a perícia é completa e detalhada, o laudo é capaz de refletir a gravidade de cada caso, sendo assim uma valiosa ferramenta para o sistema de justiça implementar medidas de proteção.
O que no Código Penal é uma lesão leve pode ser o resultado de tortura sistemática ou mesmo de uma tentativa de feminicídio por enforcamento.”
Teresa Cristina Cabral Santana Rodrigues dos Santos, Juíza de Direito, titular da 2ª Vara Criminal da Comarca de Santo André/SP.
Lesão corporal ‘leve’ pode indicar risco de feminicídio
O conceito de lesão leve é dado por exclusão, quando se considera que a lesão não é grave, gravíssima ou seguida de morte, segundo os parâmetros do Código Penal Brasileiro:
– A lesão corporal é de natureza grave se resulta em incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta dias; perigo de vida; debilidade permanente de membro, sentido ou função; aceleração de parto.
-A lesão corporal é gravíssima se resulta em incapacidade permanente para o trabalho; enfermidade incurável; perda ou inutilização do membro, sentido ou função; deformidade permanente; aborto.
– Há lesão corporal seguida de morte se a agressão resulta em morte e as circunstâncias evidenciam que o agente não quis o resultado e nem assumiu o risco de produzi-lo.
A aplicação estrita do conceito de lesão corporal, da leve a gravíssima, entretanto, não é é indicada para abordar os casos de violência contra as mulheres, já que muitas vezes pode levar à banalização de episódios de violência de alto risco. Dadas as características específicas da violência doméstica e familiar, os parâmetros para identificação de um caso grave e avaliação de risco foram melhor estabelecidos na Lei Maria da Penha, em 2006, que define cinco formas de violência doméstica e familiar e não pressupõe que só há violência quando a agressão deixa marcas físicas evidentes. Reconhecer a violência psicológica e não subestimar o risco por trás de uma ameaça podem prevenir violências mais graves, incluindo o feminicídio [saiba mais].
Não existe um único fator de risco para o feminicídio íntimo, mas vários:
Não existe um único fator de risco, mas vários. Por exemplo, alguns estudos indicam que a cor da vítima tem relação com um maior risco de sofrer violência, tanto que o Mapa da Violência 2015 mostrou que no Brasil há mais homicídios praticados contra mulheres negras. Então, o fato de uma mulher ser negra, objetivamente, aumenta o risco de ela sofrer violências mais sérias. Estudos internacionais indicam também que mulheres grávidas estão em maior risco de sofrer atos mais sérios de violência doméstica. Enfim, são muitos fatores, é preciso olhar atentamente cada caso.”
Thiago Pierobom, promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT).
Histórico de agressões anteriores, de ameaças de morte ou tentativas de matar usando faca ou arma de fogo, de ter praticado atos de agressão física (tapa, chute, soco, queimadura e outros) ou tê-la obrigado a praticar atos sexuais contra a vontade.
O agressor apresenta comportamento obsessivo de controle sobre a mulher, como querer saber o tempo todo onde ela está, com quem anda e fala, controlar o celular, e-mails e atividade nas redes sociais, proibir visitas a amigos e familiares.
O fato de a mulher não contar com nenhuma rede de apoio – a própria relação violenta faz com que a mulher se veja isolada dos amigos, familiares e da comunidade.
Ou seja, quando a vida dela é ficar dentro de casa e se dedicar exclusivamente ao homem, essa mulher está em situação de vulnerabilidade. A existência de filhos no relacionamento ou se a vítima estiver em situação de dependência financeira em relação ao agressor também são fatores que podem dificultar ou retardar um rompimento e aumentar o risco de feminicídio. E existem fatores ligados ao agressor que não são a causa da violência, mas podem potencializar um episódio de violência grave, como o uso de álcool ou drogas, o desemprego, tendências suicidas, o homem ter acesso a arma de fogo dentro de casa, entre outros.”
Thiago Pierobom, promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT).
A Patrulha Maria da Penha é um serviço da Brigada Militar do Rio Grande do Sul inaugurado em 2013 para fiscalizar o cumprimento de medidas protetivas. Os profissionais que atuam na Patrulha passam por capacitação de uma semana com aulas sobre temas relacionados à violência doméstica, como a Lei Maria da Penha, psicologia forense, andamento de processos, depoimento sem dano, entre outros [saiba mais].
A partir da criação da Patrulha no RS, outras cidades e estados brasileiros também passaram a ter uma guarda específica para a fiscalização de medidas protetivas.
Outra medida que tem sido replicada a fim de garantir a efetividade das medidas protetivas de urgência é a criação de dispositivos de emergência, como o Botão do Pânico, criado no Espírito Santo. A ideia é que as mulheres em situação de violência contem com um equipamento ou aplicativo de celular que acione rapidamente os serviços de segurança caso elas se sintam em perigo.
Medidas protetivas
Como o próprio nome diz, as medidas protetivas de urgência têm o objetivo de proporcionar proteção à mulher que está sofrendo violência. São previstas pela Lei Maria da Penha, sendo que algumas medidas são voltadas para a pessoa que pratica a violência, como o afastamento do lar, proibição de chegar perto da vítima e suspensão de porte de armas. Outras medidas são voltadas para a mulher, como o encaminhamento para programa de proteção ou atendimento pelos diferentes serviços do Poder Público.
A medida protetiva é o principal recurso da Lei em um estágio em que não há como adotar outras opções de intervenção para prevenir novas agressões e até o homicídio. É uma ferramenta usada, muitas vezes, em situações que parecem ser irreversíveis, tendo então um sentido de freio, de concretizar a intervenção do Estado e interromper o ciclo de violência para que se possa dar continuidade à conclusão do inquérito policial e ao acolhimento da mulher em situação de violência.”
Márcia Teixeira, promotora de Justiça do Ministério Público da Bahia.
O pedido das medidas pode ser feito pela própria mulher na Delegacia, pelo advogado ou defensor da vítima ou ainda pelo Ministério Público. O artigo 12 da Lei Maria da Penha prevê que a autoridade policial deve encaminhar a solicitação ao Judiciário em no máximo 48 horas, sem avaliação prévia. Se a mulher pedir, os agentes de segurança pública têm o dever de fazer a solicitação.
No entanto, por vezes, diante da naturalização de discriminações contra as mulheres, o profissional que faz o atendimento pode considerar que a mulher ‘está exagerando’ ou não reconhecer a gravidade da violência relatada. Neste cenário, a sensibilização das equipes de atendimento à mulher em relação às desigualdades de gênero é fundamental, já que a expedição rápida das medidas protetivas, acompanhada da devida fiscalização, pode salvar vidas [saiba mais].