A mídia hoje é considerada e estudada como uma das agências informais do sistema de justiça, porque condena, absolve, orienta a investigação e até investiga. Então a responsabilidade da mídia é muito grande.”
Ela Wiecko, procuradora e professora da Universidade de Brasília (UNB).
Não se questiona o poder da mídia de influenciar crenças e comportamentos, conforme já mostraram diversos estudos . E em casos com grande repercussão na imprensa, operadores do sistema de justiça admitem que a mídia pode influenciar no processo penal. Por isso devem ser redobrados os cuidados dos profissionais de comunicação ao cobrir um caso de feminicídio.
Sem dúvida, tudo o que for veiculado na imprensa, respeitadas as regras processuais, poderá ser usado no plenário do júri, tanto para beneficiar quanto para prejudicar a defesa do réu. Considerando que o plenário do júri é a ‘arena da palavra’, os jurados podem ser influenciados pelo profissional que tiver a melhor performance na apresentação dos seus argumentos, aí incluídas as matérias jornalísticas. A recomendação aos profissionais da comunicação é a mesma aos profissionais do direito, que façam seu trabalho dentro da ética. É preciso checar as informações e a fonte antes da divulgação e, acima de tudo, ter a humildade de retificar uma matéria que tiver sido veiculada de forma açodada, com informações inverídicas. Assim, o conteúdo da matéria, que é público, poderá ser impugnado pela parte contrária, durante os debates, após uma simples consulta na internet.”
Marixa Fabiane Lopes Rodrigues, juíza de Direito do Tribunal de Justiça de Minas Gerais.
A imprensa muitas vezes reforça estereótipos e um movimento de culpabilização da vítima ao abordar aquela morte de forma sensacionalista, desrespeitando a vítima – morta ou sobrevivente – e seus familiares, expondo imagens de forma desnecessária, procurando ‘justificativas’ para o assassinato.
Uma questão importante é zelar pela memória das vítimas e dos familiares. É preciso lembrar que a veiculação de imagens e a exploração de determinados aspectos da vida íntima da vítima em geral não acrescentam nada em termos de informação. A mídia deve buscar não reproduzir estereótipos, porque toda a sociedade tende a ser influenciada por isso. Então, muitas vezes, casos chegam a júri já com um veredito, porque uma série de informações que foram divulgadas realmente reproduzem estereótipos e sentenciam a vítima.”
Aline Yamamoto, advogada feminista, mestre em Criminologia e Execução Penal e pós-graduada em Direitos Humanos das Mulheres, é integrante da União de Mulheres de São Paulo.
Qual é o papel da imprensa na cobertura de casos de feminicídio?
O principal é informar sobre o crime. Mas isso não basta. É preciso informar com atenção a parâmetros éticos e com responsabilidade social sobre o que está por trás dessa morte, o contexto de violência em que ocorreu e que invariavelmente envolve desrespeito à condição da mulher e frequentemente foi sendo construído em torno de uma relação afetiva que se encerra em um crime hediondo, previsto na Lei nº 13.104/2015, a Lei do Feminicídio.
A causa não é ciúme. E a culpa nunca é da vítima. A principal causa dos crimes de violência contra as mulheres é a naturalização da desigualdade de entre os gêneros, que leva o agressor a se sentir no direito de possuir, controlar e ‘disciplinar’ a mulher ou a ex-mulher, pois frequentemente esses crimes ocorrem após a separação, quando o homem não aceita a ruptura da relação ou não admite que ela inicie outro relacionamento. ‘Ataque de ciúmes’, ‘perdeu a cabeça’, ‘estava fora de si’, ‘ficou transtornado’, ‘teve um surto’, ‘ataque de loucura’: estas são as principais alegações para ‘justificar’ um feminicídio que, além de ser frequentemente utilizadas pelos autores do crime e por policiais e delegados, são reproduzidas com grande destaque pela imprensa.
Não basta noticiar o crime, é importante contextualizar a violência, procurando saber se no caso específico havia um histórico de ocorrências anteriores e se a vítima buscou ajuda. A partir do problema individual, é necessário estabelecer uma conexão com os aspectos socioculturais envolvidos, como noções de desigualdade de direitos e sentimentos como posse, controle e direito sobre o corpo e a vida das mulheres.
Nos casos de feminicídio, muitas das mortes são consideradas por especialistas como evitáveis, porque resultam de um processo cumulativo de situações de violência que tendem ao agravamento e ao aumento do risco de agressões cada vez mais extremas. E é dever do Estado proteger a mulher e conter o agressor [Saiba mais].
Contudo, com grande frequência a vítima esbarra na incompreensão das autoridades sobre a complexidade da violência doméstica e dos altos e baixos característicos do “ciclo da violência”, que provoca as idas e vindas da mulher em tentativas frustradas de mudar a relação ou de buscar saídas para a situação de violência. Essa incompreensão faz com que as próprias autoridades, que deveriam defender a mulher, a culpem, julgando-a fraca, instável e incapaz de levar a denúncia de violência e o processo até o fim. A seguir um exemplo dessa falta de entendimento:
Algumas mortes poderiam ser evitadas, mas não são porque ninguém dá atenção para a queixa da mulher. Eles chamam, por exemplo, as mulheres que vão ao posto de saúde ou à delegacia de mulher ‘queixosa’. Isso é um desrespeito. Ela não está simplesmente se queixando, está dizendo o que está acontecendo com ela. E, às vezes, essa queixa não é só pela palavra, ou não é só aquilo que está marcado no corpo, mas são também pequenos sinais. E o Estado precisa desenvolver essa sensibilidade para poder cuidar das mulheres, como cidadãs.”
Magali Mendes, promotora legal popular (PLP) e integrante da associação de PLPs Cida da Terra de Campinas e Região.
Se especialistas declaram que muitas dessas mortes são evitáveis com um olhar mais atento e sensível das autoridades da segurança pública e do sistema de Justiça e com um acolhimento adequado pelos serviços da rede de atendimento a mulheres em situação de violência, a imprensa tem o dever de apurar onde o Estado falhou.
O que fazer quando a pauta é o feminicídio?
Quando a pauta é um assassinato de mulher, as primeiras perguntas que devem ser feitas são:
• esse assassinato poderia ter sido evitado?
• o crime teria ocorrido da mesma forma se a vítima fosse um homem?
Ao noticiar um feminicídio, raramente a imprensa estimula a reflexão sobre as causas da violência contra as mulheres. Sabe-se que muitas dessas mortes envolvem um contexto de desrespeito e menosprezo à condição feminina, por vezes até de misoginia e ódio. Fora do contexto de violência doméstica, são exemplos de feminicídio os assassinatos de mulheres acompanhados de violência sexual e/ou mutilação dos corpos, especialmente em áreas do corpo como seios, genitais e rosto.
Além de evidenciar os casos em que o Estado falhou ao não evitar essas mortes violentas, a imprensa pode mostrar também como a sociedade vem falhando ao educar meninos e meninas para se relacionarem de forma respeitosa e não-violenta. Como construtor e destruidor de preconceitos e estereótipos culturais que moldam visões e comportamentos, o jornalismo pode contribuir para a promoção de debates mais aprofundados sobre as raízes da violência contra as mulheres e a importância de uma educação que aborde a igualdade de gênero e o respeito à diversidade e aos direitos humanos.
Uma cobertura acrítica também é cúmplice da violência contra as mulheres
Com um olhar atento sobre as notícias de assassinatos de mulheres publicadas em veículos de imprensa nacionais, observa-se que a maioria absoluta das notícias apresenta uma abordagem policial, que se atem a reproduzir as informações das autoridades policiais que estão cuidando do caso, muitas vezes também reforçadora de estereótipos e discriminações contra as mulheres.
Na primeira notícia, em destaque a descoberta de um corpo feminino, por vezes sem nome; quanto menos detalhes houver sobre o caso, maior o detalhamento da cena do crime e do estado do corpo, inclusive por meio de imagens.
Se o fato se mostrar merecedor de seguimento, a cobertura continuará com informações adicionais, tais como nome da vítima, situação em que ocorreu o crime, suspeitos, comentários de testemunhas ou conhecidos sobre a possível motivação etc.
Para fazer o espetáculo ou disputar a audiência, parte da cobertura tende a focar suas narrativas na exploração de uma ‘história de amor’ com final trágico, de um momento de loucura provocado pela vítima ou de um crime ‘monstruoso’ cometido por um ser anormal e cruel, que mata com requintes de perversidade e mutila e destroça o corpo.
Predomínio de uma cobertura com viés policial
Monitoramento realizado pelo Instituto Patrícia Galvão sobre a cobertura que jornais e sites noticiosos de todas as regiões do país realizam sobre assassinatos de mulheres mostra que predomina a cobertura com viés policial. A maioria das notícias trata de casos individuais de homicídio de mulheres, com destaque para as violências mais extremas, com abordagem descontextualizada e parcial do assunto, muitas vezes apresentado como uma manifestação de “loucura” ou “doença” ou um descontrole pontual causado por excesso de bebidas ou drogas.
Uma análise dos títulos e textos aponta para um padrão de notícias nas quais:
• o histórico anterior de violências e a situação das mulheres e meninas após o crime – nos casos de tentativa de homicídio, estupro e tentativa de estupro – quase nunca são informadas;
• o termo ‘feminicídio’ tem baixíssimo uso no noticiário sobre mortes violentas de mulheres, inclusive em contexto íntimo, sendo muito usadas como ‘motivação do crime’ expressões como: ‘crime passional’, ‘ciúmes’, autor ‘fora de si’ ou ‘descontrolado’;
• são raramente difundidas nas matérias informações sobre a rede de apoio e instituições do sistema de justiça que podem ser acessadas pelas mulheres;
• os casos de feminicídio consumado são noticiados na maioria dos casos preservando-se o nome do principal suspeito, embora as matérias relatem que este é o parceiro íntimo da vítima;
• observa-se que é mais comum a divulgação dos nomes e fotos dos autores nos casos de violência sexual, mesmo quando o caso é noticiado como ainda em fase de suspeição, havendo no entanto maior preservação da identidade dos autores de tentativas de feminicídio.
Outro indicativo da falta de abordagem crítica e de ausência de um debate contextualizado e aprofundado nos jornais é a pequena quantidade de matérias que mencionam as políticas públicas e as leis que tratam dos crimes violentos contra mulheres. É papel da imprensa questionar as diferentes esferas de governo para cobrar soluções para evitar novas ocorrências e exigir a responsabilização dos autores desses crimes.
No mesmo sentido, as fontes de informação mais ouvidas pelos jornalistas são os representantes da segurança pública (policiais e delegados). Em seguida vêm os advogados dos réus, sendo raramente consultados os promotores e juízes. Na maioria das matérias não são interpelados os gestores de políticas públicas.