Abuso sexual infantil

Praticado, na maioria das vezes, por familiares ou pessoas do círculo de convivência da criança e da/o adolescente, o abuso sexual infantil compreende uma série de práticas sexuais que podem ou não envolver contato físico. Sentimentos de medo, vergonha e até mesmo culpa pela ocorrência do ato, além de fatores como vulnerabilidade social e econômica, fazem com que muitas situações de abuso sequer sejam reveladas.

O que é abuso sexual infantil?

 

Abuso sexual infantil é o termo utilizado para nomear qualquer ato sexual que envolva crianças ou adolescentes, incluindo desde carícias e toques íntimos, masturbação, exibicionismo e voyeurismo, penetração vaginal, anal ou oral, entre outras práticas que podem ou não envolver contato físico. Na maioria das vezes, o abuso é cometido por familiares ou pessoas do círculo de confiança da criança/adolescente, em ambiente doméstico e de forma contínua e reiterada. Trata-se de uma grave violação de direitos humanos, um problema social e de saúde pública que traz danos físicos, psicológicos e sociais às vítimas e suas famílias.

 

Considera-se abuso sexual infantil todo ato invasivo praticado contra crianças e adolescentes; e é importante destacar que não precisa necessariamente haver penetração ou qualquer outra agressão física para que o ato seja considerado uma violência sexual. O abuso pode acontecer de várias formas e níveis de gravidade e isso tem que ser levado em consideração, inclusive porque a legislação entende dessa maneira.

Daniela Pedroso, psicóloga do Núcleo de Violência Sexual e Abortamento Previsto em Lei do Hospital Pérola Byington, em São Paulo/SP.

 

Abuso sexual infantil

Sem contato físico: conversas sobre atividades sexuais, assédio (propostas de relações sexuais por chantagem ou ameaça), exibicionismo, voyeurismo (observar fixamente atos ou órgãos sexuais de outras pessoas, com o objetivo de obter satisfação sexual), exibição de material pornográfico à criança ou adolescente.

Com contato físico: tentativas de relações sexuais, toques, beijos e carícias nos órgãos genitais e demais regiões erógenas do corpo, masturbação, penetração vaginal e anal, sexo oral.

Na legislação brasileira, o Código Penal tipifica o abuso sexual infantil (intrafamiliar ou extrafamiliar) como estupro de vulnerável (art. 217-A). São tipificadas também outras práticas de violência sexual contra crianças e adolescentes, como o favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança/adolescente (art. 218-B), o tráfico sexual (art. 231 e 231-A) e a pornografia infantil (art.240). Para saber mais consulte a seção: Que leis e informações podem ajudar?

Meninas são as principais vítimas e familiares, os abusadores

Qualquer pessoa, independentemente do gênero, idade, raça/etnia ou classe social, pode ser vítima de violência sexual, porém, o racismo estrutural que impera no país faz com que esse crime atinja em sua maioria meninas e mulheres negras. Em decorrência de preconceitos, discriminações e negação de direitos, meninas indígenas, periféricas e com deficiência também estão entre as mais vulneráveis a todo tipo de violência de gênero, inclusive a sexual.

Em 2018, cerca de 66 mil estupros foram registrados pelas autoridades policiais no país, sendo que mais da metade das vítimas (54%) tinha menos de 13 anos e 82% eram do sexo feminino – uma média estarrecedora de quatro meninas de até 13 anos estupradas por hora no país (Anuário Brasileiro de Segurança Pública, FSBP, 2019). Meninas também foram as principais vítimas das 17.093 denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes reportadas ao Disque 100 (Disque Direitos Humanos) em 2018. Os dados do canal de denúncias também revelam que a maioria dos casos acontece no ambiente doméstico e tem como autor o pai, o padrasto entre outros familiares.

 

Maioria dos casos de abuso sexual não é denunciada

O tabu que acompanha os debates sobre educação sexual e sexualidade, além do silêncio e o medo que perseguem as vítimas desse tipo de violência acabam contribuindo para a invisibilidade dessa que é uma das mais graves violações dos direitos humanos das crianças e adolescentes.

 

Grande parte dos abusos sexuais contra crianças e adolescentes é cometida por pessoas do próprio núcleo familiar ou do círculo de convivência com a família. Isso é um fator muito significativo, não só para a ocorrência da violência como para dificultar o rompimento do silêncio e a denúncia em razão do medo de ver um familiar preso, muitas vezes até o responsável financeiro da casa.

Ana Carolina Schwan, defensora pública e coordenadora do Núcleo da Infância e Juventude da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

 

Compreender a real dimensão do abuso sexual infantil no país ainda é um desafio, uma vez que a violência sexual é bastante subnotificada. Estima-se que apenas 10% desses crimes sejam denunciados para as autoridades. Sentimentos de medo em relação ao agressor, vergonha e até mesmo culpa pela ocorrência do ato, além de fatores como vulnerabilidade social e econômica, fazem com que muitas situações de abuso sequer sejam reveladas.

No caso de abuso sexual de crianças e adolescentes, o que se percebe é que esta violência é insidiosa, camuflada e muito rotineira dentro das casas e essa característica é justamente a primeira dificuldade que enfrentamos no combate deste tipo de violência. A casa deveria ser um lugar de refúgio onde a criança pudesse se sentir segura, amparada, acolhida e livre de toda forma de violência sexual e de exploração. Mas para algumas crianças, a casa é justamente onde ela está em maior risco.

Ana Teresa Derraik, diretora geral do Hospital da Mulher Heloneida Studart, no Rio de Janeiro/RJ, e diretora médica do Nosso Instituto.

Como identificar sinais de abuso sexual infantil

Crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual costumam apresentar sinais, como mudanças repentinas de hábitos e comportamentos como, por exemplo: o surgimento de medos e rejeições, gestos e brincadeiras hipersexualizadas, entre outras (veja quadro a seguir). Uma vez observadas essas alterações, recomenda-se buscar a ajuda e orientação de profissionais que possam investigar se são indicativos de vulnerabilidade ou apenas parte do desenvolvimento da infância e da adolescência.

Em todo o processo, o mais importante e fundamental é acolher a criança, ouvi-la sem questionar seu relato ou desconsiderar seus sentimentos, procurando criar uma relação de confiança com ela. É preciso também não criticá-la ou julgá-la, além de deixar claro que a culpa do abuso é sempre do abusador e não dela.

 

Às vezes, o trauma da criança por ter sido desacreditada pode ser até maior do que a própria violência sexual em si. Então é essencial que ela tenha sua história acolhida e acreditada, inclusive porque, quando se trata de uma situação de abuso sexual, a criança só saberá relatar a situação com um nível maior de detalhamento se ela realmente tiver sofrido aquela violência. Não tem como ela inventar ou fantasiar.

Daniela Pedroso, psicóloga do Núcleo de Violência Sexual e Abortamento Previsto em Lei do Hospital Pérola Byington, em São Paulo/SP.

 

A importância da escola na identificação do abuso sexual

Professores e educadores têm um papel fundamental na proteção e orientação de crianças e adolescentes, seja fomentando diálogos sobre gênero e sexualidade na escola (veja mais na seção Quero saber mais sobre o abuso sexual infantil e formas de enfrentá-lo), seja observando mudanças no comportamento de alunas e alunos que possam ser sinais de abuso sexual. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), inclusive, aponta que professores e responsáveis por instituições de ensino fundamental, pré-escola ou creche têm o dever de comunicar à autoridade competente os casos de que tenha conhecimento.

 

Uma vez atendemos [no hospital] um menino de 8 anos que havia, durante uma palestra sobre violência sexual no pátio da escola, levantado a mão e revelado: “eu não sabia que o nome era esse, mas é isso que meu tio faz comigo”. E atendemos também uma menina que ouviu sua professora falar sobre o tema e, numa crise de choro, revelou que isto estava acontecendo com ela. Então, precisamos, mais do que nunca, unir nossas forças para formar e conectar essas redes de atendimento. Temos hoje no país uma situação em que as questões de violência de gênero estão sendo ocultadas, mas temos que dar as mãos e trabalhar para que os serviços não sejam desativados, e para que políticas públicas em relação à violência de gênero como um todo –  sexual, doméstica e familiar –  possam ser lançadas para o bem-estar da população.

Maria Ivete de Castro Boulos, médica infectologista e coordenadora do Núcleo de Assistência à Vítima de Violência Sexual (Navis), do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).

 

Quando a menina é muito jovem, o que a gente percebe e que as pesquisas também mostram é que o primeiro passo para sair de uma situação de violência é contar para alguém, que pode ser uma coordenadora escolar, uma professora, ou pode ser e geralmente é o que acontece uma colega de turma, a melhor amiga que tem a mesma idade dela. Isso é um bom incentivo porque a menina vítima de violência sexual não consegue denunciar o que está acontecendo, mas a colega consegue porque, de alguma forma, não é ela que está no olho do furacão. E, ainda que informalmente, a colega estabelece um sistema de vigilância: se aquela menina que sofre violência não vai à aula, a colega está ligada e começa a ficar incomodada. Então, geralmente, é a colega que busca a primeira ajuda. É ela que reporta a situação a uma coordenadora ou professora, o que acaba deflagrando um movimento. 

Ana Teresa Derraik, diretora geral do Hospital da Mulher Heloneida Studart, no Rio de Janeiro/RJ, e diretora médica do Nosso Instituto. 

Abuso sexual infantil e pedofilia não são sinônimos

Desde 1960, a pedofilia está entre as doenças classificadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como transtornos da preferência sexual (fantasias, desejos e atos sexuais). De acordo com o código F65.4 da CID (Classificação Internacional de Doenças), trata-se da “preferência sexual por crianças, quer se trate de meninos, meninas ou de crianças de um ou de outro sexo, geralmente pré-púberes” (que ainda não atingiram a puberdade).

É importante destacar que nem todo abusador sexual de criança e adolescente é ou pode vir a ser diagnosticado como pedófilo, assim como nem todo pedófilo coloca em prática a agressão sexual. No Código Penal brasileiro, vale ressaltar, o que se caracteriza como crime não é a pedofilia em si, mas o ato de estuprar ou explorar sexualmente uma criança ou adolescente. Cabe ressaltar também que tanto o Código Penal como o Estatuto da Criança e do Adolescente não preveem redução de pena ou da gravidade do delito se for comprovado que o abusador é pedófilo.

Como agir em uma situação de abuso sexual infantil?

Qualquer pessoa que tiver conhecimento ou presencie uma violência contra criança ou adolescente, incluindo situações de violência sexual, tem o dever de comunicar o fato imediatamente ao Conselho Tutelar do município, conforme aponta o artigo 13 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Também é possível registrar uma denúncia nas delegacias de polícia, comuns ou especializadas no atendimento à criança e ao adolescente, ou no Disque 100.

Atendimento da saúde

No Brasil, toda vítima de estupro tem direito ao atendimento imediato, emergencial (prioritário) e multidisciplinar no Sistema Único de Saúde (SUS), e não há necessidade do boletim de ocorrência para ter acesso aos serviços, conforme dispõe a Lei 12.845/2013, mais conhecida como Lei do Minuto Seguinte.

 

O atendimento médico emergencial envolve o diagnóstico e tratamento das lesões físicas, a prevenção tanto das infecções sexualmente transmissíveis como da gravidez caso a vítima não esteja usando método contraceptivo e, no caso de vítimas com menos de 14 anos, reportamos ao Conselho Tutelar. Enquanto unidade de saúde, em princípio, nossa função terminaria aí; mas, junto ao serviço social e à psicologia, também buscamos mostrar para a paciente quais são os recursos disponíveis que conferem a ela alguma segurança. Ainda que apenas visando uma redução de danos, tentamos encaminhá-la para uma rede de apoio. Também buscamos uma parceria com o Conselho Tutelar para garantir o sigilo e a privacidade da menina para que ela encontre no serviço de atendimento de saúde um ponto de apoio, um refúgio.

Ana Teresa Derraik, diretora geral do Hospital da Mulher Heloneida Studart, no Rio de Janeiro/RJ, e diretora médica do Nosso Instituto. 

 

Nos serviços de atenção e cuidados em saúde sexual e saúde reprodutiva, profissionais sensibilizados e atentos para reconhecer os sinais e sintomas do abuso sexual também podem contribuir para romper o ciclo de violência em que as vítimas se encontram ao identificar e notificar os casos de abuso sexual de crianças e adolescentes.

Direito à interrupção da gestação

 

Impor a uma criança ou adolescente que engravidou em decorrência de estupro a obrigação de parir é uma violência que pode ser ainda mais devastadora que o próprio abuso sexual que a vitimou. É preciso garantir às vítimas de violência sexual o direito de interrupção legal previsto desde 1940 em nosso Código Penal. Qualquer negativa desse direito é reduzir a humanidade e a dignidade dessas crianças e adolescentes.

Silvia Chakian de Toledo Santos, promotora de justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo.

 

A legislação brasileira permite a interrupção da gestação decorrente de estupro e, segundo o Código Penal, qualquer ato sexual praticado com menores de 14 anos configura crime de estupro de vulnerável. Portanto, crianças e adolescentes de até 14 anos que engravidam têm o direito de buscar hospitais da rede pública para realizar o aborto seguro previsto por lei, sendo necessário o acompanhamento de seu responsável. 

É importante destacar que a lei também permite a interrupção da gestação nas situações de risco à vida da gestante, o que deve ser considerado no caso de abuso sexual e gravidez de uma menina cujo corpo ainda não está completamente preparado para levar adiante uma gestação até o momento do parto.  Especialistas apontam que os os riscos de complicações maternas são significativamente maiores antes dos 15 anos de idade, momento em que se intensificam as alterações físicas, psíquicas e hormonais.

Uma gestação na fase que chamamos de adolescência precoce, ou seja, entre 10 e 15 anos, traz uma série de complicações maternas, como anemia, diabetes gestacional, pré-eclâmpsia  [elevação da pressão arterial e/ou alto nível de proteína na urina durante a gravidez] e eclâmpsia, que são convulsões que ocorrem durante a gestação ou logo após o parto. É preciso também considerar que as taxas de mortalidade materna entre gestantes de até 14 anos chegam a ser cinco vezes maiores do que entre gestantes dos 20 aos 24 anos.

Cristião Rosas, médico obstetra e coordenador da Rede Médica pelo Direito de Decidir.

Não tem como falar de enfrentamento à gestação na adolescência sem falar de violência sexual, de acesso a métodos contraceptivos, de mortalidade materna, de aborto seguro. Essas interfaces se sobrepõem, mas, se queremos impactar em mortalidade materna, temos que considerar que morrem mais mulheres que engravidaram de forma indesejada, seja em situações de violência sexual ou não, do que mulheres que programaram a gravidez (…). Então, a porta de entrada está nos serviços de prevenção de saúde sexual e reprodutiva.

Ana Teresa Derraik, diretora geral do Hospital da Mulher Heloneida Studart, no Rio de Janeiro/RJ, e diretora médica do Nosso Instituto.

A violência sexual não tem fronteiras socioeconômicas e culturais. Ela acontece nas “melhores famílias”, mas essas melhores famílias levam para um ginecologista particular. Muitas meninas engravidam do avô, do tio. Elas entram em hospitais particulares como se fossem retirar um cisto de ovário, e fazem a cirurgia rapidinho. Elas não precisam perambular para que um aborto legal seja oferecido para elas. Mas a violência sexual acontece e sabemos que existem situações sociais gravíssimas que deixam as pessoas muito mais vulneráveis para sofrer essa violência. Sabemos que a violência está em todos. Já pulou o muro de muitas casas.

Maria Ivete de Castro Boulos, médica infectologista e coordenadora do Núcleo de Assistência à Vítima de Violência Sexual (Navis), do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).

 

Para ter acesso à interrupção da gestação nos casos previstos em lei, não é preciso apresentar boletim de ocorrência policial, laudo do Instituto Médico Legal ou autorização judicial. Todos os documentos necessários serão providenciados no próprio hospital, conforme aponta  a defensora pública Paula Sant’Anna, da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

Infelizmente não são todos os hospitais da rede do Sistema Único de Saúde (SUS) que oferecem o procedimento de interrupção de gestação. Caso não haja a oferta do serviço no município, a vítima, acompanhada de seu responsável, deverá ser encaminhada, inclusive com fornecimento de transporte, ao serviço de referência mais próximo. No Mapa Aborto Legal, a organização Artigo 19 relaciona os estabelecimentos do SUS que confirmaram oferecer o procedimento (para mais informações, acesse a seção Estupro deste Dossiê).

Acompanhamento também envolve familiares

Um ponto importante do atendimento que oferecemos é que os familiares são acompanhados conjuntamente — atendemos a criança e o/a responsável que mais lida com a criança, seja a mãe e/ou o pai. E também escutamos a avó, porque, muitas vezes, a criança vive mais na casa da avó ou de uma tia do que com os pais. Então esse responsável é ouvido e trabalhado, porque ele também precisa lidar com esse impacto.

Maria Ivete de Castro Boulos, médica infectologista e coordenadora do Núcleo de Assistência à Vítima de Violência Sexual (Navis), do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).

O papel da assistência social

Além dos atendimentos nas áreas da saúde e da segurança pública, existem redes de apoio e serviços que auxiliam as famílias, crianças e adolescentes vítimas de algum tipo de violência. Entre outros serviços, os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e os Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS) oferecem atendimento psicossocial a crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual.

Que leis e informações podem ajudar em uma situação de abuso sexual infantil?

A Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente garantem proteção aos direitos da criança e do adolescente ao afirmar que é dever da família, da sociedade e do Estado colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Além de reforçar os princípios constitucionais, o ECA estabelece medidas para punir os responsáveis por crimes sexuais, como a obrigatoriedade de notificação dos casos de abuso sexual aos conselhos tutelares (art. 13); o afastamento do agressor da moradia comum (art. 130); e a proibição de uso de crianças e adolescentes em produtos relacionados à pornografia. O ECA também afirma que professores e responsáveis por instituições de ensino fundamental, pré-escola ou creche têm a obrigação de comunicar à autoridade competente os casos de que tenham conhecimento.

A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) também traz mecanismos de proteção e defesa para coibir as diversas formas de violência contra meninas e mulheres — física, sexual, patrimonial, moral e psicológica. A lei prevê uma série de direitos para a vítima, como medidas protetivas de urgência (suspensão da posse ou porte de armas do agressor, afastamento do lar, proibição de aproximação da vítima etc.) e demandas na área civil, como solicitar pensão alimentícia e a guarda dos filhos.

Qual é o prazo para realizar uma denúncia de abuso sexual?

Em 2012, a Lei 12.650/2012, mais conhecida como Lei Joanna Maranhão, alterou o Código Penal para que o prazo de prescrição de crimes contra dignidade sexual praticados contra crianças e adolescentes seja contado a partir da data em que a vítima completar 18 anos de idade, caso o Ministério Público não tenha antes aberto a ação penal contra o agressor.

Como atualmente o prazo de prescrição dos crimes de estupro é 20 anos, qualquer pessoa que tenha sofrido um abuso sexual na infância terá até os seus 38 anos para denunciar a violência. Essa é uma forma de evitar a prescrição, pois a criança/adolescente pode não se sentir preparada para relatar imediatamente a violência sofrida.

Direito a atendimento integrado e humanizado

A aprovação da Lei 13.431/2017, mais conhecida como Lei da Escuta Protetiva, foi outro importante avanço no campo legislativo. O texto altera o Estatuto da Criança e do Adolescente para definir a “escuta especializada” e o “depoimento especial” enquanto procedimentos para ouvir as crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, com o objetivo de evitar que tenham que relatar a violência que sofreram inúmeras vezes nos diferentes serviços da rede de proteção.

Art. 7º Escuta especializada é o procedimento de entrevista sobre situação de violência com criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção, limitado o relato estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade.

Art. 8º Depoimento especial é o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária.

Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017 (Lei da Escuta Protetiva). 

Segundo a lei, o depoimento deve ser intermediado por profissionais especializados, gravado em vídeo e áudio com preservação da intimidade e da privacidade da criança/adolescente vítima ou testemunha de violência. Além disso, ambos os procedimentos devem ser realizados em local apropriado e acolhedor, com infraestrutura e espaço físico que também garantam a privacidade. É importante também ressaltar que a oitiva tramitará em segredo de justiça.

A Defensoria Pública tem um papel fundamental na efetivação do direito de assistência jurídica dessa criança e adolescente vítima e/ou testemunha de violência, na forma da Lei 13.431/2017, impedindo sua revitimização e garantindo que seus direitos sejam observados, tomando as medidas necessárias para seu cuidado e acolhimento.

Ana Carolina Schwan, defensora pública e coordenadora do Núcleo da Infância e Juventude da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

Direito ao aborto em caso de estupro

Importante destacar, novamente, que no Brasil a interrupção da gravidez é permitida em casos de estupro e que qualquer ato sexual estabelecido com menores de 14 anos configura estupro de vulnerável, segundo o Código Penal. Portanto, meninas e adolescentes de até 14 anos grávidas têm o direito de buscar hospitais referenciados da rede pública para realizar o procedimento de interrupção da gestação. 

Alienação parental:  uma lei que vulnerabiliza mães e crianças ao invés de proteger

Sob o pretexto de proteger crianças, a  Lei de Alienação Parental (Lei 12.318/2010) tem sido mobilizada para defender abusadores e, ainda pior, garantir a eles a guarda dos filhos abusados. O problema começa com uma enorme controvérsia científica, pois a ‘síndrome da alienação parental’, que embasa esse marco legislativo, não é reconhecida pelos manuais da área da saúde e foi cunhada por um polêmico médico norte-americano que fez fama defendendo acusados de abuso sexual.

Além das contestações em relação à própria existência da síndrome que embasa a lei, sua aplicação é vista como outro grande problema, uma vez que se multiplicam as denúncias de casos de guarda de filhos revertida para o abusador a partir de uma lógica perversa: a acusação de abuso sexual que não contar com provas materiais é sempre considerada falsa, bem como o relato da criança, mentiroso. Nesta lógica conclui-se que a mãe está promovendo a ‘alienação parental’. Além de incompatível com a realidade, já que muitos abusos não deixam marcas físicas e não são cometidos na frente de testemunhas, essa lógica tem proporcionado a autorização legal e institucional para a violação de direitos humanos de mulheres e crianças no Brasil.

Saiba mais: 

O que preciso saber para apoiar uma vítima ou família numa situação de abuso sexual infantil?

Lembre-se que mudanças repentinas de comportamento podem ser sinais de abuso sexual. Como em toda situação de violência, especialistas destacam a importância de acolher a criança/adolescente, manter uma relação de confiança com ela e não duvidar do seu relato. Também é fundamental buscar auxílio especializado, de profissionais de saúde e advogados, para averiguar a situação e ter apoio para realizar uma denúncia e dar os próximos passos.

O mais importante é buscar apoio em algum dos órgãos do sistema de garantia de direitos — pode ser Defensoria Pública, Ministério Público, Conselho Tutelar, equipamento de saúde e de assistência, escolas — para que estes possam adotar as medidas e encaminhamentos necessários. 

Ana Carolina Schwan, defensora pública e coordenadora do Núcleo da Infância e Juventude da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

Quero saber mais sobre o abuso sexual infantil e formas de enfrentá-lo

A luta contra o abuso sexual infantil é uma tarefa de toda a sociedade de profissionais do sistema de justiça, da segurança pública, da saúde e da educação, de políticos e também das famílias. Ações e estratégias entre poder público e sociedade civil são fundamentais para a construção de políticas públicas, planos e programas que garantam a crianças e adolescentes uma vida digna e livre de violências.

Dia Nacional de Combate à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes 

Marcado por mobilizações e campanhas de conscientização, 18 de Maio é lembrado como o Dia Nacional de Combate à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes (Lei Federal 9.970). A data  remete ao caso da menina Araceli, de oito anos de idade, que foi raptada, torturada, estuprada e morta por jovens de classe média alta, em 18 de maio de 1973, em Vitória/ES. O crime ficou impune.

Educação sexual para prevenção e identificação do abuso sexual

Além da responsabilização dos autores da violência, especialistas apontam que a prevenção do abuso sexual infantil ainda é uma das melhores formas de enfrentar o problema, sendo tarefa da família e da escola discutir questões relacionadas a gênero e sexualidade. Com linguagem didática e adequada para cada idade, desde cedo é possível conversar com as crianças sobre o corpo e suas partes íntimas, explicando a diferença entre afeto e abuso. Pode-se orientar sobre condutas de adultos que não devem ser aceitas e sobre a importância de buscar ajuda caso alguma delas aconteça. Isso pode torná-las capazes de perceber situações de abuso sexual.

Há um entendimento de que é possível prevenir o abuso sexual infantil quando se consegue conversar com a criança sobre temas como “esse corpo é só seu e ninguém tem o direito de tocá-lo” ou “se algo acontecer com você, você pode me contar”.  Penso que, ao conseguir abordar esses temas, a criança se sentirá mais à vontade para falar sobre o assunto, e mais próxima de nos contar se estiver passando por uma situação de abuso sexual. Por isso fala-se muito da importância da educação sexual.

Daniela Pedroso, psicóloga do Núcleo de Violência Sexual e Abortamento Previsto em Lei do Hospital Pérola Byington, em São Paulo/SP.

Materiais para conversar com as crianças sobre abuso sexual 

Desenvolvidos por organizações especializadas na defesa dos direitos da infância e juventude, materiais educativos voltados para crianças e adolescentes podem contribuir para a prevenção por meio da educação. Confira algumas iniciativas:

  • Crescer sem violência: desenvolvido pelo Canal Futura, Unicef e Childhood Brasil, o projeto tem como objetivo disseminar informações e metodologias para enfrentamento deste tema de modo informativo, atraente e sem expor crianças e adolescentes. Com 12 episódios voltados para diferentes faixas etárias e divididos em três temas – Que Exploração É Essa?, Que Abuso É Esse? e Que Corpo É Esse? –, a série aborda de forma leve e didática conceitos como o conhecimento do próprio corpo e a importância da autoproteção e do respeito ao direito à sexualidade. 
  • Meu corpo, minha casa: lançada em 2019 pelo Ministério Público do Estado da Bahia, a campanha visa despertar de forma lúdica a atenção das crianças sobre a importância de se proteger contra tentativas de abuso sexual.

Já na fase da adolescência, os diálogos sobre educação sexual podem abordar temas como consentimento, métodos contraceptivos e prevenção da gravidez e de infecções sexualmente transmissíveis. Segundo o último relatório do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), a taxa de fecundidade no Brasil entre meninas de 15 a 19 anos é de 62 a cada mil bebês nascidos vivos, número que fica muito acima da média mundial, que é de 44 a cada mil. Dados do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc) do Ministério da Saúde mostram que, dos quase 3 milhões de nascidos em 2018, cerca de 435 mil eram filhos de adolescentes entre 15 e 19 anos e cerca de 21 mil, de meninas entre 10 e 14 anos.  

Outro dado preocupante é o índice de casamento infantil: segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), no Brasil, 6% das meninas se casam antes dos 15 e 26%, antes dos 18 anos, o que coloca o país no quarto lugar no ranking mundial de casamentos infantis e no primeiro lugar na América Latina. Um estudo publicado pelo Banco Mundial aponta, entre as consequências do casamento precoce, “riscos às trajetórias de vida das meninas, incluindo maiores riscos à saúde, maior fertilidade, escolaridade mais baixa, salários mais baixos na idade adulta, menor capacidade de tomar decisões em casa e maior risco de violência praticada pelo parceiro íntimo”.

Estudos, pesquisas e outros materiais que podem ser úteis

Estatuto da Criança e do Adolescente

Com a sanção da Lei 8069, em 13 de julho de 1990, foi criado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o principal instrumento normativo do Brasil sobre os direitos da criança e do adolescente. O ECA incorporou os avanços preconizados na Convenção sobre os Direitos da Criança adotada pela Assembleia Geral da ONU em 20 de novembro de 1989 e ratificada por 196 países, incluindo o Brasil. Acesse aqui.

Out of the Shadows Index  (Índice Fora das Sombras, em português)

Criado pela revista Britânica The Economist, com o apoio da World Childhood Foundation e Oak Foundation, o índice examina como diversos atores políticos estão respondendo à ameaça de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes em 60 países. O Brasil ocupa a 13ª posição no levantamento, que aponta que o estigma e a falta de uma discussão aberta sobre sexualidade, direitos das crianças e gênero podem prejudicar a capacidade de um país de proteger crianças e adolescentes. Acesse, em português, o relatório sobre o Brasil

Infância, gênero e orçamento público no Brasil (Cedeca, 2019)

Realizado pelo Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca), o estudo mostra que a diminuição de investimentos em políticas públicas para a garantia de direitos a crianças e adolescentes afeta principalmente meninas, aprofundando a desigualdade de gênero. A pesquisa revela ainda que, infelizmente, desde 2014, o país vem enfrentando reduções nos gastos com ações para o enfrentamento de problemas que têm como principais vítimas as meninas, como o casamento infantil, a exploração sexual, os homicídios na adolescência e a evasão escolar. Acesse aqui.

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