Qual é o papel da imprensa?

A imprensa possui um papel estratégico na formação da opinião e na pressão por políticas públicas e pode contribuir para ampliar, contextualizar e aprofundar o debate sobre a forma mais extrema de violência de gênero: o feminicídio. Veja abaixo algumas reflexões sobre o papel da imprensa e consulte neste Dossiê um banco de fontes para entrevistas sobre o tema.

O poder da mídia e a responsabilidade social da imprensa

A mídia hoje é considerada e estudada como uma das agências informais do sistema de justiça, porque condena, absolve, orienta a investigação e até investiga. Então a responsabilidade da mídia é muito grande.”
Ela Wiecko, procuradora e professora da Universidade de Brasília (UNB).

Não se questiona o poder da mídia de influenciar crenças e comportamentos, conforme já mostraram diversos estudos . E em casos com grande repercussão na imprensa, operadores do sistema de justiça admitem que a mídia pode influenciar no processo penal. Por isso devem ser redobrados os cuidados dos profissionais de comunicação ao cobrir um caso de feminicídio.

Sem dúvida, tudo o que for veiculado na imprensa, respeitadas as regras processuais, poderá ser usado no plenário do júri, tanto para beneficiar quanto para prejudicar a defesa do réu. Considerando que o plenário do júri é a ‘arena da palavra’, os jurados podem ser influenciados pelo profissional que tiver a melhor performance na apresentação dos seus argumentos, aí incluídas as matérias jornalísticas. A recomendação aos profissionais da comunicação é a mesma aos profissionais do direito, que façam seu trabalho dentro da ética. É preciso checar as informações e a fonte antes da divulgação e, acima de tudo, ter a humildade de retificar uma matéria que tiver sido veiculada de forma açodada, com informações inverídicas. Assim, o conteúdo da matéria, que é público, poderá ser impugnado pela parte contrária, durante os debates, após uma simples consulta na internet.”
Marixa Fabiane Lopes Rodrigues, juíza de Direito do Tribunal de Justiça de Minas Gerais.

A imprensa muitas vezes reforça estereótipos e um movimento de culpabilização da vítima ao abordar aquela morte de forma sensacionalista, desrespeitando a vítima – morta ou sobrevivente – e seus familiares, expondo imagens de forma desnecessária, procurando ‘justificativas’ para o assassinato.

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Uma questão importante é zelar pela memória das vítimas e dos familiares. É preciso lembrar que a veiculação de imagens e a exploração de determinados aspectos da vida íntima da vítima em geral não acrescentam nada em termos de informação. A mídia deve buscar não reproduzir estereótipos, porque toda a sociedade tende a ser influenciada por isso. Então, muitas vezes, casos chegam a júri já com um veredito, porque uma série de informações que foram divulgadas realmente reproduzem estereótipos e sentenciam a vítima.”
Aline Yamamoto, advogada feminista, mestre em Criminologia e Execução Penal e pós-graduada em Direitos Humanos das Mulheres, é integrante da União de Mulheres de São Paulo.

Qual é o papel da imprensa na cobertura de casos de feminicídio?

O principal é informar sobre o crime. Mas isso não basta. É preciso informar com atenção a parâmetros éticos e com responsabilidade social sobre o que está por trás dessa morte, o contexto de violência em que ocorreu e que invariavelmente envolve desrespeito à condição da mulher e frequentemente foi sendo construído em torno de uma relação afetiva que se encerra em um crime hediondo, previsto na Lei nº 13.104/2015, a Lei do Feminicídio.

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imagem04A causa não é ciúme. E a culpa nunca é da vítima. A principal causa dos crimes de violência contra as mulheres é a naturalização da desigualdade de entre os gêneros, que leva o agressor a se sentir no direito de possuir, controlar e ‘disciplinar’ a mulher ou a ex-mulher, pois frequentemente esses crimes ocorrem após a separação, quando o homem não aceita a ruptura da relação ou não admite que ela inicie outro relacionamento. ‘Ataque de ciúmes’, ‘perdeu a cabeça’, ‘estava fora de si’, ‘ficou transtornado’, ‘teve um surto’, ‘ataque de loucura’: estas são as principais alegações para ‘justificar’ um feminicídio que, além de ser frequentemente utilizadas pelos autores do crime e por policiais e delegados, são reproduzidas com grande destaque pela imprensa.

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Não basta noticiar o crime, é importante contextualizar a violência, procurando saber se no caso específico havia um histórico de ocorrências anteriores e se a vítima buscou ajuda. A partir do problema individual, é necessário estabelecer uma conexão com os aspectos socioculturais envolvidos, como noções de desigualdade de direitos e sentimentos como posse, controle e direito sobre o corpo e a vida das mulheres.

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Nos casos de feminicídio, muitas das mortes são consideradas por especialistas como evitáveis, porque resultam de um processo cumulativo de situações de violência que tendem ao agravamento e ao aumento do risco de agressões cada vez mais extremas. E é dever do Estado proteger a mulher e conter o agressor [Saiba mais].

Contudo, com grande frequência a vítima esbarra na incompreensão das autoridades sobre a complexidade da violência doméstica e dos altos e baixos característicos do “ciclo da violência”, que provoca as idas e vindas da mulher em tentativas frustradas de mudar a relação ou de buscar saídas para a situação de violência. Essa incompreensão faz com que as próprias autoridades, que deveriam defender a mulher, a culpem, julgando-a fraca, instável e incapaz de levar a denúncia de violência e o processo até o fim. A seguir um exemplo dessa falta de entendimento:

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Algumas mortes poderiam ser evitadas, mas não são porque ninguém dá atenção para a queixa da mulher. Eles chamam, por exemplo, as mulheres que vão ao posto de saúde ou à delegacia de mulher ‘queixosa’. Isso é um desrespeito. Ela não está simplesmente se queixando, está dizendo o que está acontecendo com ela. E, às vezes, essa queixa não é só pela palavra, ou não é só aquilo que está marcado no corpo, mas são também pequenos sinais. E o Estado precisa desenvolver essa sensibilidade para poder cuidar das mulheres, como cidadãs.”
Magali Mendes, promotora legal popular (PLP) e integrante da associação de PLPs Cida da Terra de Campinas e Região.

Se especialistas declaram que muitas dessas mortes são evitáveis com um olhar mais atento e sensível das autoridades da segurança pública e do sistema de Justiça e com um acolhimento adequado pelos serviços da rede de atendimento a mulheres em situação de violência, a imprensa tem o dever de apurar onde o Estado falhou.

O que fazer quando a pauta é o feminicídio?

Quando a pauta é um assassinato de mulher, as primeiras perguntas que devem ser feitas são:

• esse assassinato poderia ter sido evitado?
• o crime teria ocorrido da mesma forma se a vítima fosse um homem?

Ao noticiar um feminicídio, raramente a imprensa estimula a reflexão sobre as causas da violência contra as mulheres. Sabe-se que muitas dessas mortes envolvem um contexto de desrespeito e menosprezo à condição feminina, por vezes até de misoginia e ódio. Fora do contexto de violência doméstica, são exemplos de feminicídio os assassinatos de mulheres acompanhados de violência sexual e/ou mutilação dos corpos, especialmente em áreas do corpo como seios, genitais e rosto.

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Além de evidenciar os casos em que o Estado falhou ao não evitar essas mortes violentas, a imprensa pode mostrar também como a sociedade vem falhando ao educar meninos e meninas para se relacionarem de forma respeitosa e não-violenta. Como construtor e destruidor de preconceitos e estereótipos culturais que moldam visões e comportamentos, o jornalismo pode contribuir para a promoção de debates mais aprofundados sobre as raízes da violência contra as mulheres e a importância de uma educação que aborde a igualdade de gênero e o respeito à diversidade e aos direitos humanos.

Uma cobertura acrítica também é cúmplice da violência contra as mulheres

Com um olhar atento sobre as notícias de assassinatos de mulheres publicadas em veículos de imprensa nacionais, observa-se que a maioria absoluta das notícias apresenta uma abordagem policial, que se atem a reproduzir as informações das autoridades policiais que estão cuidando do caso, muitas vezes também reforçadora de estereótipos e discriminações contra as mulheres.

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Na primeira notícia, em destaque a descoberta de um corpo feminino, por vezes sem nome; quanto menos detalhes houver sobre o caso, maior o detalhamento da cena do crime e do estado do corpo, inclusive por meio de imagens.

imagem-18Se o fato se mostrar merecedor de seguimento, a cobertura continuará com informações adicionais, tais como nome da vítima, situação em que ocorreu o crime, suspeitos, comentários de testemunhas ou conhecidos sobre a possível motivação etc.

Para fazer o espetáculo ou disputar a audiência, parte da cobertura tende a focar suas narrativas na exploração de uma ‘história de amor’ com final trágico, de um momento de loucura provocado pela vítima ou de um crime ‘monstruoso’ cometido por um ser anormal e cruel, que mata com requintes de perversidade e mutila e destroça o corpo.

Predomínio de uma cobertura com viés policial

Monitoramento realizado pelo Instituto Patrícia Galvão sobre a cobertura que jornais e sites noticiosos de todas as regiões do país realizam sobre assassinatos de mulheres mostra que predomina a cobertura com viés policial. A maioria das notícias trata de casos individuais de homicídio de mulheres, com destaque para as violências mais extremas, com abordagem descontextualizada e parcial do assunto, muitas vezes apresentado como uma manifestação de “loucura” ou “doença” ou um descontrole pontual causado por excesso de bebidas ou drogas.

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Uma análise dos títulos e textos aponta para um padrão de notícias nas quais:

• o histórico anterior de violências e a situação das mulheres e meninas após o crime – nos casos de tentativa de homicídio, estupro e tentativa de estupro – quase nunca são informadas;
• o termo ‘feminicídio’ tem baixíssimo uso no noticiário sobre mortes violentas de mulheres, inclusive em contexto íntimo, sendo muito usadas como ‘motivação do crime’ expressões como: ‘crime passional’, ‘ciúmes’, autor ‘fora de si’ ou ‘descontrolado’;
• são raramente difundidas nas matérias informações sobre a rede de apoio e instituições do sistema de justiça que podem ser acessadas pelas mulheres;
• os casos de feminicídio consumado são noticiados na maioria dos casos preservando-se o nome do principal suspeito, embora as matérias relatem que este é o parceiro íntimo da vítima;
• observa-se que é mais comum a divulgação dos nomes e fotos dos autores nos casos de violência sexual, mesmo quando o caso é noticiado como ainda em fase de suspeição, havendo no entanto maior preservação da identidade dos autores de tentativas de feminicídio.

Outro indicativo da falta de abordagem crítica e de ausência de um debate contextualizado e aprofundado nos jornais é a pequena quantidade de matérias que mencionam as políticas públicas e as leis que tratam dos crimes violentos contra mulheres. É papel da imprensa questionar as diferentes esferas de governo para cobrar soluções para evitar novas ocorrências e exigir a responsabilização dos autores desses crimes.

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No mesmo sentido, as fontes de informação mais ouvidas pelos jornalistas são os representantes da segurança pública (policiais e delegados). Em seguida vêm os advogados dos réus, sendo raramente consultados os promotores e juízes. Na maioria das matérias não são interpelados os gestores de políticas públicas.

Cuidados com revitimização e discriminações

Em relação aos conteúdos sobre feminicídio que vêm sendo produzidos e divulgados pela mídia, muitas vezes surgem estereótipos sobre papéis e comportamentos socialmente esperados das mulheres e que são usados para inverter a culpa pelo crime, colocando sobre as vítimas a responsabilidade pela violência que sofreram quando elas não se enquadram nesses estereótipos.

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Os estereótipos de gêneros fazem com que, no processo de evidenciação desse crime, de explicar como as coisas aconteceram, os polos acabem se invertendo para colocar a mulher como a responsável pela violência que sofreu. Busca-se então enquadrar a mulher nos moldes de gênero, verificar se ela é uma boa mãe, uma mulher comportada, e também como se vestia, por onde transitava etc. Desconstruir os estereótipos de gênero ainda é uma tarefa a ser feita e a imprensa também tem esse papel importante, de mostrar que a mulher não pode nunca ser responsável pela violência que sofreu.”
Wânia Pasinato, socióloga, pesquisadora e consultora da ONU Mulheres no Brasil.

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Da mesma forma que dão margem a que se culpe a vítima pela violência sofrida, os estereótipos definem os papéis atribuídos e comportamentos socialmente esperados dos homens que, de certa forma, buscam justificar atitudes machistas e misóginas que culminam em homicídio.

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“O mais comum é explorar a vida sexual da mulher e balizar o valor dela ou medir o grau de ‘culpa’ que a mulher tem sobre a própria violência que sofre a partir de um julgamento moral sobre sua sexualidade. Trata-se basicamente de um controle do corpo das mulheres baseado no estereótipo do recato. E quando a mulher viola esse estereótipo cai muito facilmente no julgamento moral de que foi ‘provocativa’, foi ‘merecedora’ daquela violência, por não cumprir os papéis tradicionais que são exigidos das mulheres. Acredito que essa questão da sexualidade, do corpo, é ainda muito forte e com frequência recebe destaque na cobertura desses casos.”
Aline Yamamoto, advogada feminista, mestre em Criminologia e Execução Penal e pós-graduada em Direitos Humanos das Mulheres, é integrante da União de Mulheres de São Paulo.

Como exemplo, vemos frequentemente na cobertura desses feminicídios o uso de expressões como ‘crime passional’, ‘defesa da honra’, ‘violenta emoção’, ou ‘a mulher provocou até que o tirou do sério e o fez cometer um ato de loucura’.imagem-29

A naturalização da violência contra as mulheres contribui para que muitas vezes esses homicídios sejam cometidos na frente de testemunhas, de familiares, em locais públicos frequentados pela vítima, na saída do trabalho ou da escola. O autor sente-se no direito e até quer a visibilidade do crime como forma de ‘lavar a honra’ e reforçar sua masculinidade e poder: ‘se não fica comigo, não fica com mais ninguém’.

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Vamos falar do feminicídio íntimo: muitas vezes o parceiro ou ex mata a mulher em casa ou no trabalho, em um trajeto conhecido. E ele não faz questão de ocultar o crime de testemunhas ou de negar a autoria. O que isso significa? Que ele sente satisfação, autorização para matar. Além disso, muitas vezes, a arma do crime é uma faca de cozinha, uma tesoura ou as próprias mãos do agressor. E a mulher nem imagina que vai ser morta pelo companheiro. Precisamos acabar com essa história de crime passional, é crime em razão de gênero. É preciso entender que a ‘honra’ de ninguém vale a vida de outra pessoa, que ninguém é posse de ninguém e que esse tipo de discurso acaba diminuindo a culpa do agressor. Precisamos desconstruir essa visão machista urgentemente.”
Andrea Brochier Machado, perita criminal do Instituto Geral de Perícias (IGP) em Porto Alegre/RS.

Por isso a mídia tem grande responsabilidade e deve tomar cuidado redobrado ao noticiar os crimes que ocorrem quando a mulher decide romper uma relação violenta. Ao transformar tragédias individuais em espetáculos a mídia promove a notoriedade dos autores de crimes de sequestro, cárcere privado e ameaça, podendo contribuir para estimular ou reforçar comportamentos violentos.

Um dos maiores exemplos foi o Caso Eloá, em que a mídia cobriu ao vivo o cárcere privado da jovem de 15 anos, que acabou assassinada pelo ex-namorado, Lindemberg. O sequestrador foi entrevistado ao vivo pela TV, que ainda tentou negociar com ele a libertação da jovem e de sua melhor amiga e o descrevia usando expressões como ‘bom rapaz’, ‘trabalhador’ e ‘joga bem futebol’, chegando a torcer para que o sequestro acabasse em um ‘casamento futuro’ entre o rapaz e sua ‘amada’. A espetacularização do caso pela mídia ampliou o poder de Lindemberg, um poder de vida e morte que ele julgava ter sobre Eloá [Saiba mais em documentário sobre o caso].

Nem banal e nem anormal: trata-se de um homicídio com motivação de gênero

Outra questão é que o foco da imprensa nos crimes extremos tende a tirar a atenção do fato de que esse desfecho fatal foi o resultado de um processo contínuo de violências que foram se agravando.

Um exemplo que teve grande repercussão foi o assassinato da cabeleireira Maris Islaine de Morais pelo ex-marido, gravado pelas câmeras de segurança do salão em que ela trabalhava. O vídeo que mostra o agressor invadindo o local e disparando sete vezes contra a vítima foi amplamente divulgado pela imprensa e mídias sociais. Depois do crime, foi apurado que a cabelereira já havia feito pelo menos oito boletins de ocorrência contra o ex-marido por conta das várias ameaças de morte. Testemunhas relatavam que o agressor já teria até jogado uma bomba no salão.

Ao focar somente o desfecho das mortes violentas, nos crimes extremos, a imprensa deixa de mostrar que muitos desses casos graves começaram anos atrás, com atitudes de desrespeito, de violência psicológica e violência moral, que foram se acumulando até chegar a um feminicídio. Invariavelmente encontra-se uma história anterior de diversas violências em graus variados, que não receberam a devida atenção do Estado para evitar que a mulher fosse morta.

Sabemos que o mais simples ato de violência já deve ser tratado com certa cautela, avaliado com cuidado, porque nem toda agressão leve vai se tornar uma agressão grave, mas quase toda agressão grave tem por trás um histórico de agressões que foram se agravando com o passar do tempo. Então acho que a imprensa tem esse papel de, por um lado, mostrar o caso grave e, por outro, sempre falar que a violência não começa com um tiro na cabeça. E penso que esse papel, dependendo do veículo de comunicação, tem sido um pouco negligenciado.”
Adriana Mota, socióloga e sócia-diretora da Veda Consultora em Projetos Sociais.

Além de não reproduzir os vários mitos associados a esses crimes, os meios de comunicação tem a responsabilidade de contribuir para a desconstrução de visões estereotipadas que levam a atribuir à vítima a culpa por sua própria morte.

Invisibilidade e exposição das principais vítimas, as mulheres negras

O Mapa da Violência 2015 mostra que as mulheres negras morrem mais do que as brancas de forma violenta no Brasil. Enquanto as taxas de homicídio de mulheres brancas caíram 11,9% entre 2003 e 2013, passando de 3,6 para 3,2 por 100 mil brancas, as taxas das mulheres negras cresceram 19,5% no mesmo período, aumentando de 4,5 para 5,4 por 100 mil.

O que há em relação às mulheres negra é um desvalor que inviabiliza. A mídia fala de feminicídio quando uma mulher branca é assassinada. E os números têm mostrado que, quando uma mulher branca é assassinada, três mulheres negras também foram mortas e a gente não ouve essa notícia. Acho que o maior exemplo, a maior constatação da presença desse estereótipo, desse racismo, é essa afirmação de que nossa vida não tem valor. Três de nós foram mortas e ninguém liga, ou melhor, a mídia não liga, porque nós ligamos. Uma branca pode ainda aparecer desqualificada, mas não se compara à desqualificação que sofremos, em termos de que a nossa vida não teve o menor valor e não há interesse sobre essa morte.”
Jurema Werneck, integrante da ONG Criola, médica e Doutora em Comunicação e Cultura. Também integrante do Grupo Assessor da Sociedade Civil Brasil da ONU Mulheres.

Além de tratar das vidas das mulheres negras como se não tivessem qualquer valor, essa invisibilidade contribui para que se ignore a maior vulnerabilidade dessas mulheres e não se busquem soluções para a violência racial.

No extremo oposto, quando rompe essa invisibilidade, por vezes a mídia recorre a estereótipos racistas, difundidos socialmente, que atingem as mulheres negras e que precisam ser desconstruídos.

É muito comum que as matérias exponham – inclusive sem nenhum tratamento da imagem – corpos de mulheres negras mortas jogadas no chão, ensanguentadas, mutiladas, em vários casos até mesmo com o rosto à mostra. Em uma amostragem de 51 casos, em 39 matérias os corpos de vítimas expostos em tais condições eram de mulheres negras. Das demais, uma era identificada como indígena e 11 eram brancas (que na maioria absoluta dos casos analisados só são apresentadas em fotos colhidas de perfis de redes sociais).

Ilustrar uma reportagem com a imagem de um corpo destroçado é dispensável em qualquer caso, assim como são desnecessárias descrições detalhadas de um crime hediondo como um estupro. A pergunta é: o que se acrescenta em termos de informação jornalística descrever que uma mulher estuprada e morta sofreu penetração vaginal, oral, anal e/ou com objetos?imagem-33pb

 

Direitos das vítimas e parâmetros éticos

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Existem jornalistas investigativos que respeitam parâmetros éticos. Mas a lógica da imprensa, da televisão, em geral é vender, é ter mais picos de audiência, ou é vender mais jornal. Então se destaca aquilo que causa sensacionalismo, e isso é péssimo. Esse é o problema: vão pela lógica daquilo que é sensação, mas não informam, não fazem uma notícia sequer que não reproduza alguns estereótipos.”
Ela Wiecko Volkmer de Castilho, procuradora e professora da Universidade de Brasília (UNB).

O Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros define os limites para a divulgação de informações com interesse jornalístico. Em seu art. 6º estabelece entre os deveres do jornalista: “divulgar os fatos e as informações de interesse público”; “respeitar o direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem do cidadão”; além de “defender os direitos do cidadão, contribuindo para a promoção das garantias individuais e coletivas, em especial as das crianças, adolescentes, mulheres, idosos, negros e minorias”; e “combater a prática de perseguição ou discriminação por motivos sociais, econômicos, políticos, religiosos, de gênero, raciais, de orientação sexual, condição física ou mental, ou de qualquer outra natureza”.

Já no art. 11, o Código de Ética define que o jornalista não pode divulgar informações “de caráter mórbido, sensacionalista ou contrário aos valores humanos, especialmente em cobertura de crimes e acidentes”.

Há uma preocupação muito grande [na mídia] com o modo como o crime foi cometido, a crueldade, como o corpo da vítima foi encontrado, uma banalização que inclusive desrespeita os direitos das vítimas. Vamos imaginar as famílias lendo ou vendo aquelas descrições, até porque muitas vezes os crimes envolvem violência sexual ou o vilipêndio do cadáver. E isso impacta, mas não contribui para que haja um olhar crítico sobre o fenômeno, que é sempre visto como um caso pontual, uma monstruosidade, sem que se olhe para a forma como o sistema de Justiça criminal acaba processando esses casos.”
Fernanda Matsuda, socióloga e advogada que integrou o grupo responsável pela pesquisa A Violência Doméstica Fatal: o problema do feminicídio íntimo no Brasil (Cejus/FGV, 2014).

Régua maniqueísta para medir culpa da vítima e do agressor

Em um extremo, a mulher que se encaixa no papel socialmente esperado; no outro, o monstro agressor. Especialistas criticam o uso de uma ‘régua maniqueísta’ para medir o grau de culpabilidade nesses casos. A crítica é que a legislação sobre violência doméstica e feminicídio não é dirigida a santas e monstros, mas à cidadã e ao cidadão comum. E é o homem comum, o ‘cidadão de bem’, o ‘trabalhador’ que comete essa violência homicida também contra uma mulher comum, que não pode ser cobrada a ter um comportamento que é esperado socialmente para ter direito à vida.

Um exemplo foi o tratamento jornalístico dado ao caso de Amanda Bueno, ex-dançarina de funk que foi assassinada pelo noivo, durante uma briga motivada pela revelação que a vítima fizera de que já havia trabalhado como stripper em uma boate.

Milton pega Amanda pelo pescoço e bate com a cabeça dela 11 vezes em uma pedra do jardim e lhe dá 10 coronhadas na cabeça. Na sequência, ele entra na casa, veste um colete à prova de balas e se arma com um revólver, três pistolas e uma escopeta calibre 12. Ao passar por Amanda, que estava caída no chão, atira com a pistola e, na sequência, com a escopeta no rosto da noiva.” [Saiba mais]

O vídeo do circuito de segurança que mostra o momento em que Amanda foi assassinada viralizou na internet e foi exibido em programas de TV e sites jornalísticos. Por ser ex-dançarina e ex-stripper, Amanda foi apresentada como merecedora da própria morte e alvo de deboche nas redes sociais. Além da culpabilização da vítima, seu direito à memória e privacidade também foi violado com a divulgação de fotos da necropsia do corpo no Instituto Médico Legal, que foram enviadas para o celular de familiares de Amanda e divulgadas na internet.

Além do vazamento do vídeo e das imagens da necropsia, a violência no espaço virtual também atingiu de forma brutal a filha de Amanda, de 12 anos, que teve que se afastar das redes sociais após se tornar alvo de agressões.

Respeito à privacidade e à confidencialidade da informação

Infelizmente não sinto essa preocupação da imprensa. Quando houve o assassinato [de Amanda Bueno] e o vídeo foi veiculado pelas emissoras de TV, sei que algumas procuraram distorcer um pouco a imagem, com aqueles quadradinhos, para não mostrar exatamente a violência quando cometida. Mas, de alguma forma, a veiculação desses vídeos se transforma também em um chamariz, um certo sensacionalismo. E versões não editadas desse vídeo estão disponíveis até hoje na internet, assim como as fotos do corpo da Amanda. E ninguém foi responsabilizado. A única pessoa que sofre com isso são os familiares, que também devem ter visto essas fotos. E não houve nenhuma investigação interna para saber como houve esse vazamento de imagens.”
Adriana Mota, socióloga e sócia-diretora da Veda Consultora em Projetos Sociais.

As Diretrizes para Investigar, Processar e Julgar com Perspectiva de Gênero as Mortes Violentas de Mulheres – Feminicídios (ONU Mulheres, 2016) recomendam que “as informações coletadas, sobretudo aquelas que tratam de aspectos íntimos da vida da vítima, devem ser protegidas para que não se tornem públicas, sobretudo pela exploração midiática dos casos”.

Elaborado em uma parceria entre a ONU Mulheres e governo federal, essas diretrizes visam contribuir para o aperfeiçoamento da resposta das instituições públicas nas diversas etapas, desde a investigação policial, o processo judicial e o julgamento dos assassinatos de mulheres. A proposta é orientar sobre como perceber as razões de gênero em um feminicídio a partir da análise das circunstâncias de cada crime, das características do autor e da vítima e do histórico de violências.

Um dos aspectos destacados no documento diz respeito ao sigilo e direito à memória das vítimas:

Considerando os princípios de respeito à dignidade humana, privacidade e memória das vítimas diretas e indiretas (ver capítulo 5), que devem nortear a atuação de todos os profissionais nos procedimentos judiciais, é importante enfatizar que a preservação do sigilo de imagens (fotos e vídeo) – sejam elas recolhidas ou produzidas durante as investigações – deverá ser garantida durante toda a fase de investigação e processo judicial. A disponibilização dessas imagens para veículos de comunicação e mídia podem comprometer a própria investigação, bem como revitimizar as vítimas diretas (sobreviventes ou não) e as vítimas indiretas.”
Diretrizes para investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres – Feminicídios (ONU Mulheres, 2016).

Nesse sentido, a coordenadora de acesso à justiça da ONU Mulheres no Brasil, Wânia Pasinato, que integrou o grupo que elaborou e está implantando as diretrizes nacionais, reforça:

Acho que é fundamental que a mídia trabalhe com respeito à memória das vítimas. Deve-se preservar a privacidade, ter respeito pela intimidade, não explorar fatos da vida íntima, principalmente da vida sexual, do comportamento sexual dessa vítima. Para ‘vender’ o caso, o que se faz na verdade é violar a memória da vítima e dos seus familiares, e isso não contribui em nada para que se tenha uma resposta judicial à altura e a contento para esse crime.”
Wânia Pasinato, socióloga, pesquisadora e consultora da ONU Mulheres no Brasil.

Comunicação em prol dos direitos das mulheres

A imprensa pode fazer a diferença ao dar visibilidade às diferentes dimensões do feminicídio, tanto os cometidos no âmbito doméstico como quando se evidencia o menosprezo ou discriminação à condição de mulher. E, se grande parte dessas mortes são evitáveis e continuam acontecendo, uma das razões é a banalização da violência contra as mulheres, que leva a uma naturalização do feminicídio e, ao mesmo tempo, a uma sensação de tolerância e impunidade em relação a esses crimes.

Pesquisa realizada pelo Instituto Patrícia Galvão em 2013 [confira] revela que a maioria da população (85%) percebe o risco de uma mulher ser assassinada quando denuncia ter sido agredida pelo parceiro ou ex. Ou seja, a população já expressa a percepção de falha do Estado na proteção das mulheres que buscam romper com uma relação violenta. Ao mesmo tempo, o estudo aponta que a maioria (92%) também não vê o silêncio das mulheres como uma alternativa segura, já que consideram que quando as agressões contra a mulher ocorrem com frequência, podem terminar em assassinato.

A imprensa precisa de dados para mostrar a dimensão do problema

As estatísticas sobre os homicídios de mulheres com motivação de gênero – os feminicídios – apenas começam a ser levantados. A produção desses dados é estratégica para a contextualização e aprofundamento do debate público sobre esse grave problema no país.

Após dez anos da Lei Maria da Penha uma parcela significativa das secretarias de segurança pública não tem dados de vitimização separados por sexo e autor do crime; e ainda são pontuais algumas iniciativas para realizar o cadastramento de inquéritos de violência doméstica e familiar e de feminicídio. Somente em 2016 o Conselho Nacional do Ministério Público criou o Cadastro Nacional de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, previsto no art. 26 da Lei Maria da Penha, de 2006 [Saiba mais].

As delegacias são criadas a partir da demanda. Então, se não existe estatística, se o tema não é pautado, não se justifica ter uma delegacia, uma DDM a mais. Esta tem sido a desculpa que o Estado dá para a gente. Não se justifica o serviço integrado, por exemplo, de abrigos, não se justificam políticas integradas nas regiões. Assim, penso que não ter as estatísticas demonstra o desinteresse sobre o tema e prejudica, inclusive, para dar uma resposta para as políticas públicas na região. Acaba justificando a falta de políticas públicas, e isso é muito ruim para nós. E não é só o Estado que deve produzir informações, as universidades têm que contribuir mais com a produção de dados para justificar e exigir mais políticas públicas.”
Magali Mendes, promotora legal popular (PLP) e integrante da associação de PLPs Cida da Terra de Campinas e Região.

Acesso a fontes especializadas é fundamental

Para contextualizar e aprofundar sua cobertura, a imprensa precisa de fontes disponíveis e acessíveis: representantes dos sistemas de segurança pública e justiça, gestores de políticas públicas e profissionais dos serviços de atendimento e assistência a mulheres, parlamentares, pesquisadores, ativistas de movimentos sociais e outras pessoas que tenham experiência e/ou sejam especialistas no tema e que possam explicar os números, apresentar novos enfoques e fazer análises e comentários com uma linguagem fácil e direta, compreensível para o público.

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Direito à reparação precisa ser mais divulgado

Quando se fala em um homicídio o principal foco é a punição do autor do crime, em especial quando se trata de crime qualificado, com motivação fútil e sem dar chance de defesa à vítima. Contudo, há outra questão que não aparece na mídia que é o direito à reparação das vítimas indiretas e sobreviventes, sobre o qual representantes do Ministério Público destacam que é dever do Ministério Público pedir reparação para as vítimas já no momento da denúncia crime, podendo ser complementado na esfera cível.

Está bem, conseguiu a condenação; mas e aí?’ Essa mulher vai para a casa, quando é sobrevivente, ou, quando morreu, como ficam os filhos, qual é a assistência dada? Esses parentes têm que ter assistência psicológica. É isso que devemos trabalhar para mudar e colocar a vítima no centro e também olhar para o depois.”
Silvia Chakian de Toledo Santos, promotora de justiça, integrante do Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica (GEVID) do Ministério Público Estadual de São Paulo.

Sugestões e ferramentas para a cobertura

1) Compreender o que é feminicídio

Para informar corretamente quando um assassinato de uma mulher é um crime de feminicídio é preciso compreender os dois principais contextos em que ele ocorre, conforme define a Lei nº 13.104/2015: violência doméstica e/ou menosprezo à condição do sexo feminino [Saiba mais em entrevista exclusiva da vice-procuradora-geral da República, Ela Wiecko].

2) Trabalhar pautas necessárias

Se muitas são mortes evitáveis e a pergunta deve ser: ‘onde o Estado falhou?’, a resposta passa por saber quais são as responsabilidades do Estado para evitar a violência contra as mulheres e o que poderia/deveria ter feito no caso dessa morte específica.

A publicação Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006): conheça a lei que protege as mulheres da violência doméstica e familiar, editada pela Secretaria de Políticas para as Mulheres em 2012, apresenta de forma didática as atribuições e responsabilidades de cada órgão público ao se deparar com uma denúncia de violência contra a mulher ocorrida no âmbito doméstico e familiar, como polícia, Defensoria, Ministério Público, Judiciário etc.

Se a vítima buscou assistência em equipamentos do Estado, qual foi o encaminhamento? Foram solicitadas medidas protetivas? Houve seguimento do caso e avaliação? Foram observadas insuficiências dos equipamentos e equipes que atenderam a ocorrência? Houve incorreções ou erros de avaliação no atendimento prestado pelo sistema de segurança ou de justiça? Enfim, o que poderia ter sido feito e quem não agiu para evitar o final trágico?

O Estado tem o dever constitucional de criar mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares. Nesse âmbito devem ser desenvolvidas e implementadas políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres [Saiba mais: Quais os serviços existentes e seus limites].

3) Cuidados com títulos e imagens

A partir da compreensão das características específicas do feminicídio, e das violências que o precedem, é importante que a imprensa evite destacar informações desnecessárias, que acabam reforçando estereótipos discriminatórios, induzindo à culpabilização da vítima pelo crime sofrido e/ou violando seu direito à memória.

Confira mais alguns exemplos de títulos que culpabilizam a vítima e trazem informações e imagens desnecessárias e revitimizantes:

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4) Divulgar canais de denúncia e serviços

É função da imprensa e dos veículos de comunicação divulgar serviços públicos que atendam as necessidades de cidadãs e cidadãos, em especial canais de denúncia e serviços de prestação de informações de utilidade pública.

Informar sobre direitos, alternativas e apoio para a saída de relações violentas e sobre canais de informação e denúncia pode contribuir para evitar desfechos fatais [Saiba mais: Como evitar mortes anunciadas?].

A imprensa tem um enorme papel social que é levar informação para a população. Deve informar especialmente sobre quais são os recursos disponíveis para as mulheres em situação de violência, quais são os mecanismos do Estado, ou da sociedade civil, ou as redes possíveis que podem ser acionadas nos casos de violência contra as mulheres.”
Aline Yamamoto, advogada feminista, mestre em Criminologia e Execução Penal e pós-graduada em Direitos Humanos das Mulheres, é integrante da União de Mulheres de São Paulo.

Para visualizar a localização geográfica clique em Mapa da Rede de Serviços, acesse o site da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) ou o Atlas de Acesso à Justiça.

Na dúvida sobre a localização de um serviço para inclusão na matéria, uma alternativa é indicar o Ligue 180 como fonte de informações.

A Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 é um serviço de utilidade pública de emergência, de abrangência nacional, que pode ser acessado pelo número 180, gratuitamente, 24 horas por dia, de qualquer terminal telefônico – móvel ou fixo, particular ou público – todos os dias da semana, inclusive domingos e feriados.

Para acesso a dados e estatísticas, acesse o banco de pesquisas deste Dossiê ou recorra aos sites das secretarias de segurança pública nos Estados brasileiros.

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